A ARTE E O ISSO
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
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Criado em 14 de Abril de 2014
Cultura
"Menina comendo pássaro (O Prazer)", 1927, René Magritte
“Digamo-lo claramente de uma vez por todas : o maravilhoso é sempre belo; qualquer tipo de maravilhoso é belo, só o maravilhoso é belo. [...] Desde cedo as crianças são apartadas do maravilhoso, de modo que, quando crescem, já não possuem uma virgindade de espírito que lhes permita sentir extremo prazer na leitura de um conto infantil.” Manifesto Surrealista, André Breton, 1924.
Dizemos sempre: “não sei por que fiz isso”, “não sei por que disse isso”, “não sei por que sinto isso”; e, ao fazê-lo, deixamos claro que nem tudo em nossa existência é lógico ou racional. Outro exemplo, bem simples, são aqueles nossos vícios, que sabemos que não fazem bem, mas que não conseguimos abandonar, desejos irracionais, literalmente.
Tudo isso foi analisado pelo médico neurologista austríaco e fundador da psicanálise no mundo, Sigmund Freud, que dividiu o aparelho psíquico humano em “id” (ou Isso), “ego” e “superego”. O “id” significa a parte desorganizada e inexplicada da nossa personalidade. O “ego” é aquele espaço dentro de nós que age de acordo com a realidade e segundo a razão. E o “superego” reflete a interiorização das normas culturais de comportamento, aprendidas por toda a vida, a partir da relação inicial com os pais.
O ser humano – como mostramos – não funciona apenas de acordo com a própria racionalidade e, muito menos, segundo normas de comportamento aprendidas em seu convívio cultural. A todo momento vemos isso, seja na leitura de um conto de fadas, seja ao fazer uma prece, seja ao cometer um crime. O “Isso” está sempre presente para indagar: “Vocês sabem por que me fizeram isso?”.
Foi assim que, em 1924, para organizar ideias e conceitos que já surgiam em 1917, através do poeta Guillaume Apollinaire (1886-1918), jovem artista ligado ao cubismo e autor da peça teatral “As Mamas de Tirésias” (1917), considerada precursora do movimento, que o Manifesto Surrealista foi publicado pelo escritor francês André Breton e trouxe para o mundo um novo modo de encarar a arte.
“A Tentação de Santo Antônio”, 1946, Salvador Dalí/ Fotos: reprodução internet
O surrealismo, a partir dos conceitos da psicanálise de Sigmund Freud, defendeu o primado das forças subterrâneas e vulcânicas do “Isso”, sobre o que considerariam a banalidade e obviedade da arte realista. Nos termos do manifesto: “A atitude realista é fruto da mediocridade, do ódio e da presunção rasteira. É dela que nascem os livros que insultam a inteligência. [...] a mania incurável de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, só serve para entorpecer cérebros”.
Entre os artistas ligados ao grupo, em épocas variadas, estão os escritores franceses Antonin Artaud (1896-1948), também dramaturgo, Paul Éluard (1895-1952), Louis Aragon (1897-1982), Jacques Prévert (1900-1977) e Benjamin Péret (1899-1959), que viveu no Brasil. Entre os escultores, encontra-se o italiano Alberto Giacometti (1901-1960); bem como o pintor italiano Vito Campanella (1932), os pintores espanhóis Salvador Dalí (1904- 1989), Juan Miró (1893-1983) e Pablo Picasso, o pintor belga René Magritte (1898-1967), o pintor alemão Max Ernst (1891- 1976), além do cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983).
A psicanálise e o surrealismo apontavam, então, para a fragilidade do conceito formulado pelo filósofo René Descartes, em “Discurso do Método”, que dizia: “Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.”
A grande sacada é que em todo homem existe algo desconhecido dele mesmo, algo que não pode ser racionalizado sem um procedimento que Freud chamou de psicanálise; e que nada obstante a inspiração artística tenha sempre certa referencia na realidade, ela é sempre atravessada pelo fluxo do nosso inconsciente.
Assim, artistas talentosos podem criar obras realistas, com virtuosismo e precisão técnica. Mas outros mestres, com talento igual, podem criar e reformular universos de fantasia, na literatura, poesia, pintura, música, dança, teatro e cinema. A arte encontra, então, no “isso”, a criação a partir do inconsciente, e vê na surrealidade o mais próximo que o homem fazer humano pode chegar de Deus.
* Crítico de arte, estudioso de direito e de psicanálise e professor de judô – [email protected].