AS MUITAS FACES DA LEI

Cultura

Criado em 19 de Outubro de 2015 Cultura

POR DOMINGOS DE SOUZA NOGUEIRA NETO*

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IMAGINEMOS UMA SOCIEDADE sem leis, em que os relacionamentos sociais fossem estabelecidos livremente pelas pessoas. Essa sociedade seria melhor ou pior do que aquelas que conhecemos?
 
Esse debate atravessa o tempo. Somos naturalmente bons e corrompidos por nossas relações sociais, como afirma Rousseau? Ou somos nossos próprios lobos, em conflitos permanentes, como afirma Hobbes? Teríamos antigamente feito um contrato social para que nossas relações fossem gerenciadas pelo Estado ou teríamos criado um poder acima de nós, capaz mesmo de destruir aqueles que se insurgissem contra ele, desafiando as normas impostas para a garantia da paz?
 
O contrário da lei é liberdade. Todos gostamos de liberdade, mas, para nós mesmos, não para os outros. Queremos liberdade absoluta de imprensa e, para defendê-la, chegamos a imaginar um poder acima da lei, do qual seria dependente todo o conceito de democracia do mundo ocidental. Todos nós defendemos isso, em algum momento, contra os “comunistas”, os “fascistas”, os “fundamentalistas” e tantos “istas” que ora ou outra aparecem em nossa vida.
 
Mas imagine, leitor, que você, que lê esta matéria, tenha sido injustamente acusado de um crime bárbaro, que não cometeu, e, por essa razão, tenha sido exposto, por toda a imprensa, como autor de um crime hediondo, que nada teve a ver com você.
 
O que quero dizer é que a lei relativiza a liberdade e o poder do outro sobre você; que o conceito de liberdade absoluta pode ser muito perigoso entre pessoas e grupos que não dispõem de valores inatos de ética e onde o bem e o mal não são sempre fáceis de se separarem.
 
Então – concluirá o leitor –, toda lei é boa e tem que ser obedecida. E eu diria: - Não, existem leis boas, existem leis más, existem leis terríveis, e, muitas vezes, é justificável o levante contra a lei.
 
Exemplos não faltam. A escravidão dos povos africanos e dos cativos de guerra foi legalizada, assim como a perseguição aos judeus, aos povos palestinos etc. Terrível. Guerras foram e são travadas em nome dessas causas, com todos os excessos e os terrores.
 
Em nome do direito irrestrito à liberdade e à livre iniciativa, parcelas inteiras da sociedade de diversos povos são reduzidas à miséria e têm sua força de trabalho explorada além dos limites do humanamente aceitável. Em outro giro, percebemos que existem Estados estabelecendo o monopólio religioso de um grupo, proibindo a prática de outras religiões. Ambas as situações potencializam conflitos e lutas revolucionárias.
 
Existem leis boas que parecem más, como é o caso dos impostos, que, quando bem-aplicados, criam vantagens para a sociedade, como a construção de escolas e hospitais, e uma oferta de transporte satisfatória.
 
Mas quem faz a lei? Para essa pergunta há muitas respostas. No Brasil, as leis são feitas pelos Poderes Legislativo municipal (vereadores), estadual (deputados estaduais) e federal (deputados federais e senadores). Mas é certo que o Poder Executivo (prefeitos, governadores e presidente) exercem também atividade assemelhada à legislativa; e que juízes, desembargadores e ministros, ao interpretarem as leis, as redefinem, procurando adequá-las a um mecanismo complexo que é o sistema legislativo como um todo. O próprio povo, que apresenta dispositivos muito frágeis para controlar diretamente a vida pública, pode propor leis de iniciativa popular.
 
As leis mudam no tempo, e bons exemplos são as leis que contribuíram para o avanço da situação social da mulher, dos afrodescendentes; e as leis penais, que foram pouco a pouco adquirindo caráter socioeducativo. As leis mudam conforme o modelo de Estado. Estados capitalistas têm maior preocupação com a liberdade de mercado; os socialistas se preocupam com o bem-estar geral da população; e os Estados religiosos, com a prevalência de certo modelo de conduta pautado por “determinações de Deus”.
 
Existem leis escritas e normas de conduta não escritas, mas que têm força de lei. Assim, aguardar em seu lugar, na fila, não é uma lei, mas um costume com força de lei.
 
A todo direito, que pode ser livremente exercido, corresponde outro conceito, que é o de abuso de direito. O direito à liberdade de expressão é uma garantia constitucional, o que não quer dizer que possamos fazer discursos racistas, ou de incitamento ao ódio, ou ainda sair pelas ruas agredindo verbalmente as pessoas.
 
A imprensa gostaria de ter liberdade absoluta, e, para dourar essa pílula, diz que a democracia não existiria sem a liberdade incondicional de imprensa. Grandes empresas gostariam de pagar poucos impostos, e, para isso, fazem o discurso da competitividade, do pleno emprego etc.
 
E você, leitor? Qual é o seu interesse quando uma lei é feita? Melhores condições de saúde pública? Melhor educação para os seus filhos? Maiores salários e menores preços? Mais segurança? Mais lazer? Então, me respondam: - Esses interesses correspondem ao da maior parte da sociedade? Se a sua resposta for “sim”, tenho que fazer outra pergunta: - Então, por que isso não está dando certo? Vou dar um palpite: - Acho que temos votado sempre em pessoas que pensam em cuidar dos interesses delas mesmas, e não dos nossos enquanto uma coletividade. Enganam-nos com discursos, com campanhas de marqueteiros, e sempre, sempre, caímos no mesmo logro. Assim, eles ficam cada vez mais ricos, e nós, nesta mesma...
 
O que quero dizer é que não temos escolha. É melhor nós termos leis do que dependermos de nossa própria compreensão da ética para vivermos em sociedade. Isso porque somos seres egoístas e perigosos para nós mesmos.
 
Temos evoluído, é verdade. Pouco a pouco, nós deixamos de ser racistas, sexistas e homofóbicos. As armas, símbolos de nossa virilidade, vão se tornando estranhas em nossas gavetas e paredes. Olhamos animais, rios, florestas e começamos a nos preocupar. O bullying vai nos soando como prática ofensiva e desagradável. E a corrupção – que tínhamos apenas como um dado da realidade – começa a parecer absolutamente insuportável. Vamos nos armando de leis para nos protegermos da humanidade!
 
O próximo passo, neste nosso xadrez da vida, é o uso de um superpoder – a “visão além do discurso”. Temos que enxergar, em cada votação, em cada decisão judicial, em cada pessoa que quer nos representar (e não vamos nos esquecer de que dizem por aí que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”), qual é o interesse escondido, o projeto, a visão de mundo, e, por que não, o próprio caráter dos nossos protagonistas. Nesse caso, seremos senhores da lei, não seus escravos.
 
* Crítico de arte, professor de judô, estudioso de direito, filosofia, sociologia, história e psicanálise



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