EH CAPOEIRA!

PARA QUE SE LOCALIZE A EXISTÊNCIA de uma arte marcial – diferente de mera técnica de combate ou defesa pessoal –, é importante a averiguação de seus princípios. Esses são preceitos, leis ou pressupostos, considerados universais, que definem as regras pelas quais uma sociedade civilizada deve se orientar.

 

Os princípios têm intima relação com a filosofia, que aspira a "amor à sabedoria" e consiste no estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem.

Tanto o estudo dos princípios como a busca de uma filosofia só podem ter um sentido quando considerados na marcha da história, mutável, transformada pela ação humana. Somos o que fazemos, o que queremos, e tudo isso em relação aos outros.

 

É possível, a partir da história e dos princípios, identificar valores para uma filosofia que leve à classificação da capoeira como uma autêntica arte marcial?

 

Todos sabem que os povos africanos foram escravizados pelos europeus e mantidos nessa condição até o fim do século XVIII. A história da capoeira começa no século XVI, na época em que o Brasil era colônia de Portugal. Ao chegarem ao Brasil, os africanos perceberam a necessidade de desenvolverem formas de proteção contra a violência e a repressão dos colonizadores brasileiros. Eram constantemente alvos de práticas violentas e de castigos dos senhores de engenho. Quando fugiam das fazendas, eram perseguidos pelos capitães do mato, que tinham uma maneira de captura muito violenta.

 

Os senhores de engenho proibiam os escravos de praticarem qualquer tipo de luta. Logo, os escravos utilizaram o ritmo e os movimentos de suas danças africanas, adaptando-os a um tipo de luta. Surgia, assim, a capoeira, uma arte marcial disfarçada de dança. Foi um instrumento importante da resistência cultural e física dos escravos brasileiros.

 

A prática da capoeira ocorria em terreiros próximos às senzalas (galpões que serviam de dormitório para os escravos) e tinha como funções principais a preservação da cultura, o alívio do estresse do trabalho e a manutenção da saúde física. Muitas vezes, as lutas aconteciam em campos com pequenos arbustos, chamados na época de capoeira ou capoeirão. Do nome do lugar surgiu o nome da luta.

 

A capoeira nasceu, então, como forma de resistência física e moral à escravidão e tem como signo inicial e primeiro princípio a liberdade. Por outro lado, a escravidão tinha como justificativa a supremacia de algumas raças e povos sobre outros.

 

Ao lutarem pelo contrário a isso, os capoeiristas afirmaram sua segunda razão filosófica de existência: o estatuto da igualdade.

 

No Brasil, a escravidão tinha uma nódoa bem própria: a sujeição dos povos de raça negra. Então, pode-se afirmar, sem temor, que essa modalidade diz “não” ao racismo.

 

Também se pode afirmar que, ao se necessitar ocultar na dança uma arte marcial, servindo-se desse expediente como trincheira de resistência moral, estabeleceu-se uma peculiaridade da luta: a busca da felicidade na própria arte marcial e através dela. E, como ganho adicional, a plenitude da beleza na arte marcial.

 

Em 26 de novembro de 2014, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) considerou a roda de

capoeira patrimônio imaterial da humanidade. De acordo com a organização, a capoeira representa a luta e a resistência dos negros brasileiros contra a escravidão durante os períodos colonial e imperial de nossa história.

Temos, então, valores, princípios e filosofia: a capoeira pugna pela liberdade, pela igualdade e contra o racismo, considerando a prática da alegria uma forma superior de resistência moral. É uma arte marcial plena e admiradora da beleza. E ferramenta de liberdade de vários povos e de uma raça. Quantas artes marciais podem dizer isso? Eh capoeira!