Pensando Funk
POR DOMINGOS DE SOUZA NOGUEIRA NETO*
Sócrates e Aristóteles, filósofos gregos - Reprodução Internet
RECENTEMENTE, A CITAÇÃO DA funkeira Valesca Popozuda como “grande filósofa contemporânea” em uma prova do ensino médio de uma escola pública em Taquatinga, no Distrito Federal, provocou uma polêmica intrigante em nível nacional. “Filósofos verdadeiros”, “profissionais da filosofia”, “aprendizes de filósofos” e moralistas de todo tipo apressaram-se em defender as muralhas da “cultura pura e verdadeira”, em interesse próprio, dos filhos, netos, etc.
Filosofia (do grego , literalmente, “amor à sabedoria”) é o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem. Ao abordar esses problemas, a filosofia distingue-se da mitologia e da religião por sua ênfase em argumentos racionais; por outro lado, diferencia-se das pesquisas científicas por, geralmente, não recorrer a procedimentos empíricos em suas investigações. Entre seus métodos, estão a argumentação lógica, a análise conceptual, as experiências de pensamento e outros métodos a priori.
O funk carioca, basicamente ligado ao público jovem, tornou-se um dos maiores fenômenos de massa no Brasil. Na década de 1980, o antropólogo Hermano Vianna foi o primeiro cientista social a abordá-lo como objeto de estudo, em sua dissertação de mestrado, que daria origem ao livro “O Mundo Funk Carioca”, de 1988.
De 2000 a 2014, o funk carioca modificou-se, libertando-se dos traços de sua origem, e passou a ter uma característica própria. Tornou-se popularmente conhecido em todo o país e no exterior.
Com o aumento do número de raps/melôs gravados em português, apesar de quase sempre se utilizar a batida do miami bass, o funk carioca começou a década de 1990 criando a sua identidade própria. As suas letras refletem o dia a dia das comunidades ou fazem exaltação a elas (muitos desses raps surgiram de concursos de rap promovidos dentro das comunidades). Em consequência, o ritmo ficou cada vez mais popular e os bailes se multiplicaram. Ao mesmo tempo, o funk começou a ser alvo de ataques e de preconceito da sociedade, não só por ter se popularizado entre as camadas mais pobres da população, mas também porque, em vários desses bailes, ocorriam os chamados “corredores”, quando dois grupos rivais, chamados “lado A e lado B”, se enfrentavam, resultando, por vezes, em mortes.
Com isso, passou a haver uma constante ameaça de proibição dos bailes. Isso gerou o surgimento de canções funk que pediam a paz entre os grupos rivais, como a música “Som de Preto”, de Amilcka e Chocolate. Em meio a isso, surgiu uma nova vertente do funk carioca, o funk melody, com músicas mais melódicas e temas mais românticos, seguindo mais fielmente a linha musical do freestyle americano e alcançando sucesso nacional.
Ao longo da nacionalização do funk, os bailes – até então, realizados em clubes nos bairros do subúrbio da capital do estado do Rio de Janeiro – expandiram-se a céu aberto, nas ruas, onde as equipes rivais se enfrentavam disputando quem tinha a aparelhagem mais potente, o grupo mais fiel e o melhor DJ. Com o tempo, o funk ganhou grande apelo entre moradores de comunidades carentes, pois as músicas tratavam do cotidiano dos frequentadores, abordando a violência e a pobreza das favelas.
A questão do funk, de sua sensualidade, muitas vezes, crua, e da violência, diz algo sobre nós mesmos, nossa sociedade e nosso mundo, que grande parte da nossa elite, filosófica e intelectual, inclusive, gostaria de manter em porões. Mas algo de genuíno na filosofia, aquela de que todos devem ter alguma apropriação, desde a escola (da vida, inclusive), tem como propósito abrir as portas do que escondemos, para forçar o nosso olhar. Não vou discutir a qualidade da funkeira Valesca Popozuda, como filósofa, sabendo tão pouco sobre ela, mas o funk, sim, sem dúvida, é uma filosofia, porque cumpre uma linha do pensamento de Sócrates, já tida como verdadeira há mais de 400 anos a.C., que lembra: “Eu não posso ensinar nada a ninguém, eu só posso fazê-lo pensar”.
* Crítico de arte, estudioso de direito e de psicanálise e professor de judô – [email protected].