Quando a comida é um problema
Conheça os principais distúrbios de alimentação existentes e saiba como eles podem levar o indivíduo à morte se não forem tratados
Um passo de cada vez. É assim que Júlia, de 30 anos, como será chamada nesta reportagem nossa personagem, caminha para se ver livre da anorexia que a acompanha há três anos. É a primeira vez que ela expõe a própria história e, por isso, pediu para não ser identificada pelo verdadeiro nome. No pico da doença, Júlia chegou a pesar 28 kg. Ainda em tratamento, ela acredita que conseguiu progredir bastante e voltou a aceitar seu corpo.
O distúrbio da jovem é caracterizado pela perda de peso à custa de dieta extremamente restritiva, pela desenfreada pela magreza, pela distorção da imagem corporal, pela negação da gravidade do baixo peso e por alterações do ciclo menstrual.
Essa forma distorcida de se enxergar é um dos sintomas dos transtornos alimentares, doenças que levam a graves alterações do comportamento alimentar, podendo acarretar o emagrecimento extremo ou a obesidade. “Os principais transtornos são a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e a compulsão alimentar”, destaca a médica nutróloga Jackelyne Mendonça.
Enquanto a anorexia é a busca pela magreza a qualquer custo por meio de uma dieta bem restrita, a bulimia se caracteriza por episódios repetidos de grande ingestão alimentar, seguidos por comportamentos extremos de compensação, como a indução a vômitos, o uso abusivo de laxantes ou diuréticos, a prática de jejum prolongado ou de exercícios físicos em excesso. Tudo para não engordar.
Na contramão, a compulsão alimentar ocorre quando o indivíduo não consegue ter controle sobre o que come. Nesse caso, ele ingere grandes quantidades de comida e só para quando se sente desconfortável, na maior parte das vezes sem se preocupar com a imagem corporal. A maioria dos compulsivos apresenta sobrepeso ou obesidade.
Há ainda outros transtornos menos comuns, como a vigorexia, a ortorexia e o picacismo (veja mais detalhes no quadro). O que todos esses distúrbios têm em comum é o sofrimento do paciente, que possui uma autoimagem diferente da real e que, por isso, faz da comida – ou da falta dela – um problema para o organismo. “São doenças graves que, quando não corretamente diagnosticadas e tratadas, podem levar a complicações clínicas severas, como desnutrição, alterações do equilíbrio hidroeletrolítico, da pele e de anexos, bem como dos mais diversos sistemas: gástrico, renal, hematológico e endócrino. Esses transtornos podem também causar infertilidade e até levar ao óbito do paciente”, alerta a especialista.
Além de comprometerem a saúde física das pessoas, essas doenças costumam se associar a problemas mentais, como depressão, ansiedade, transtorno de pânico e de personalidade.
CAUSAS
Os distúrbios podem surgir a partir da infância, durante a adolescência ou no início da fase adulta. O psiquiatra Ismael Sobrinho explica que a anorexia acomete mais as mulheres. “Estima-se que somente entre 5% e 15% das pessoas com anorexia e bulimia sejam do sexo masculino”.
As causas são variadas, mas a pressão cultural para se seguirem certos padrões estéticos ou algumas exigências de profissões relacionadas à moda ou aos esportes somadas à presença de uma baixa autoestima tornam o indivíduo propenso a desenvolver um quadro de transtorno alimentar.
O psiquiatra informa que aspectos biológicos também podem influenciar. A serotonina, um neurotransmissor, pode afetar o apetite, o humor e o controle dos impulsos da pessoa. “Algumas pesquisas buscam investigar como os transtornos alimentares podem alterar os níveis de serotonina no cérebro e também a maneira como o sistema nervoso projeta informações para o corpo sobre a fome e a saciedade. Por exemplo, a maioria das mulheres apresenta melhora do humor e do sentimento de bem-estar depois de comerem. Entretanto, para as que têm anorexia, o não comer é que desencadeia a melhora do humor e do bem-estar”, relata.
TRATAMENTO
Buscar se tratar não é algo fácil para os pacientes com transtornos alimentares. Por terem uma visão distorcida da própria imagem corporal, eles se recusam a assumir seu estado de saúde, acreditando não precisarem de ajuda. Por isso, o suporte e a compreensão da família e dos amigos são fundamentais para que o indivíduo dê o primeiro passo.
Pelo fato de essas doenças afetarem seriamente corpo e mente, a pessoa deve ser acompanhada por uma equipe multiprofissional, geralmente formada por psicólogos, psiquiatras, nutrólogos, endocrinologistas e nutricionistas.
O objetivo é restaurar o comportamento alimentar adequado, restabelecer o peso considerado normal para a idade e a altura, e eliminar as gravidades físicas e mentais do transtorno.
De acordo com Ismael Sobrinho, para recuperar a saúde mental do paciente, o psiquiatra e o psicólogo avaliam a situação e traçam estratégias para o tratamento. O primeiro poderá medicar o indivíduo com o objetivo de resgatar o equilíbrio do humor. Já o segundo vai tratar as relações dele com os que o cercam, a fim de ajudá-lo a se entender melhor. “O processo psicoterápico auxilia na recuperação da autoestima, oferecendo ao paciente um caminho de descoberta das causas dos sintomas e lhe possibilitando lidar melhor com os desequilíbrios emocionais por meio de estratégias e habilidades”, afirma.
Já o nutrólogo, como esclarece Jackelyne Mendonça, pode dar o suporte para a saúde física. “O paciente deve voltar a ter uma visão harmônica de seu corpo através do uso de medicamentos e terapia, além de aprender a ter uma relação saudável com sua alimentação por meio da prescrição individualizada de uma dieta balanceada e da correção de possíveis faltas de vitaminas, minerais e hormônios”, salienta.
Nos casos graves, quando os pacientes já estão com a saúde seriamente comprometida, a internação hospitalar pode ser indispensável.
NO CAMINHO CERTO
No caso de Júlia, só quando chegou aos 38 kg ela decidiu se tratar. A paciente conta que, durante anos, passou por fases de negação. “Eu me obriguei muitas vezes a ir ao médico porque passava muito mal. Desmaiava, caía no chão, mal conseguia andar, pois tomava muitos remédios para me ajudarem a perder peso. Mas, quando as pessoas falavam, eu achava que elas estavam contra mim”, lembra.
E foi exatamente dos amigos e de sua terapeuta que o sinal de alerta de que o cenário precisava mudar veio. “O tratamento foi com muita luta mesmo. Fui uma vez a um psiquiatra com minha psicóloga porque eu não queria ir, não tinha a mínima facilidade de falar alguma coisa. Tomei antidepressivos por um curtíssimo período de tempo porque eu acreditava que eles poderiam me engordar”, conta.
A ideia de emagrecer se intensificou na adolescência, quando, aos 14 anos, ela perdeu o pai. Mesmo não sendo uma pessoa acima do peso, Júlia contava as calorias de tudo que ingeria. O ano de 2013, quando a mãe também faleceu, foi a época em que a doença de fato se manifestou, e ela passou a perder peso exageradamente.
Atualmente, Júlia afirma não estar totalmente recuperada e diz vivenciar pequenas crises da doença, mas considera ter caminhado bastante desde que começou o tratamento. Ela também segue fazendo terapia. “Comecei tentando reduzir os remédios que eu tomava para emagrecer e passei a procurar viver mais e fazer coisas que eu gosto. Acredito que o que mudou foi a forma de eu ver a vida. Ainda tenho altos e baixos, mas considero que dei uns bons passos para frente”, pontua.
SUPORTE
Para se ajudar e dar suporte a outras pessoas com transtorno alimentar, ela criou no Facebook a página ‘Anorexia da Alma’. A intenção da comunidade virtual é prestar assistência a vítimas da doença por meio de mensagens motivacionais e troca de experiências. O canal tem ajudado a moça a se recuperar. “Eu fico muito feliz quando vejo alguém que estava numa fase muito ruim da anorexia e conseguiu mudar o foco pelo fato de ter lido alguma coisa que estava lá ou, até mesmo, por ter conversado comigo”, comemora.
No espaço, há postagens de incentivo para quem sofre a doença, dicas de livros sobre o problema, além de suporte mútuo. É muito comum alguém desabafar em um post e, logo depois, outra pessoa deixar uma mensagem de força e esperança. “O bom da página é que ninguém julga ninguém. Todo mundo está no mesmo meio”.
Hoje em dia, Júlia não se pesa e pretende não se preocupar com números mais. Ela acredita já ter engordado cerca de 10 kg. “Eu tive que ir contra a minha própria mente e me aceitar. Se eu continuasse andando pelo mesmo caminho, com certeza eu iria morrer. Sou grata demais por ter meu trabalho, ter conquistado tanta coisa legal e, simplesmente, estar viva”, finaliza.
É POSSÍVEL SUPERAR O TRANSTORNO ALIMENTAR
A adolescência da jornalista Márcia Bueno, de 33 anos, foi marcada por uma fase de compulsão alimentar. Aos 17, em meio ao período de conclusão do ensino médio e de escolha da profissão, ela passou por processos de angústia e ansiedade, e o refúgio encontrado foi a comida. Ela chegou a engordar 11 kg em um ano, o que prejudicou, e muito, sua autoestima, tornando difícil sua própria aceitação. “Era constantemente repreendida em casa pela minha mãe devido ao volume de comida que ingeria de uma só vez. De bombom a arroz de forno, nada eu deixava para trás. Ficava tão constrangida que comecei a comer dentro do banheiro. Voltava do colégio a pé para tentar compensar, mas não adiantava. Tinha muito sono e passei por um estágio depressivo”, recorda-se.
Márcia chegou a consultar um psiquiatra, mas, felizmente, após o início da faculdade, o sobrepeso foi diminuindo. Atualmente, Márcia não sofre com o problema e tenta se alimentar de forma mais saudável com a ajuda da reeducação alimentar pela qual passou. Vez ou outra, a ansiedade a leva a ter episódios de compulsão, sobretudo no período da tensão pré-menstrual, a famosa TPM. No entanto, eles se restringem a, no máximo, três dias por mês e não são tão intensos.
A mudança a fez ter uma nova perspectiva de vida. “Agora, pratico exercícios físicos e estou sempre atenta para evitar que um pequeno episódio compulsivo se transforme em um abismo”, arremata.