REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA –RECENTE DO BRASIL

POR DOMINGOS DE SOUZA NOGUEIRA NETO*

Criado em 06 de Abril de 2016 Cultura
A- A A+

NUM BELO DIA, os animais da fazenda do senhor Jones se dão conta da vida indigna a que são submetidos: eles se matam de traba­lhar para os homens, dão-lhes todas as suas energias em troca de uma ração miserável, para, no fim, serem abatidos sem piedade. Liderados por um grupo de porcos, os bichos então expulsam o fazendeiro de sua propriedade e pretendem fazer dela um Estado em que todos serão iguais. Logo, começam as disputas internas, as perseguições e a exploração do bicho pelo bicho, que farão da granja um arremedo grotesco da sociedade humana.

Publicada em 1945, “A Revolução dos Bichos” foi imediatamen­te interpretada como uma fábula satírica sobre os descaminhos da Revolução Russa, chegando a ser utilizada pela propaganda antico­munista. A novela de George Orwell de fato fazia uma dura crítica ao totalitarismo soviético, mas seu sentido transcende amplamen­te o contexto do regime estalinista.

Voltemos ao Brasil atual, onde, novamente, bandeiras verme­lhas são rasgadas porque, na ânsia de serem aceitos, socialistas copiam as práticas que repudiavam e perdem-se em vícios típicos da sociedade capitalista.

Antes de seguir, quero ponderar algumas questões. Primei­ramente, este país sempre foi assolado pela corrupção. Sempre houve aqui a mais franca promiscuidade na relação entre políticos e empresários. E mais: essa corrupção não era maior nem menor do que a de agora: era igual!

Em segundo lugar, sempre existiu uma tremenda batalha entre a direita e a esquerda em todo o mundo, e o Brasil é hoje o cenário da mais importante luta contemporânea dessa modalidade. Mas – ponderariam alguns leitores mais lúcidos – a acusação feita aos que hoje ocupam o poder não é a de serem “de esquerda”, mas a de “serem corruptos” e de se valerem da corrupção para se perpe­tuarem no poder. Bom, se isso for verdade, se estamos diante de um levante público contra todas as formas de corrupção, só posso dizer: viva! Estamos entrando em uma nova era. Não reelegeremos nenhum dos políticos que estão no poder, iremos renovar tudo. Será o início de um novo país, a maior mudança desde o nosso descobrimento, em 1500.

De toda maneira, enquanto isso não acontece, quero chamar a atenção para alguns detalhes. Para a “esquerda” assumir o poder no Brasil por via eleitoral, ela teve de dar um passo interessante, que foi abandonar todo o discurso que a vinculava ao socialismo, deixando de falar em revolução para falar em programas sociais: o discurso “paz e amor”. A única coisa que ficou de socialista foi a cor das camisas e das bandeiras, que ainda incomoda muita gente.

No poder, essa esquerda, um pouco envergonhada, descobriu algo que todo brasileiro intui desde a infância: que os políticos têm profunda preocupação consigo mesmos e com a forma de que podem se valer para transformar os votos que receberam em moeda, de preferência, no dólar.

O que me parece então é que esses “socialistas” chegaram à conclusão de que, para obterem a aliança de nossa tradicional e consolidada categoria de políticos, teriam de comprá-los em troca do apoio para projetos importantes como o “Fome Zero” e outros programas sociais que visavam tirar o povo brasileiro da miséria, da ignorância etc.

É interessante esse dilema. Seria essa uma tática legítima para realizar programas que salvariam as pessoas da exclusão absoluta em que viviam desde que o Brasil é Brasil ou seria uma violação a questões de princípio, fundantes da ética política, e da própria lei?

Solidariedade à parte, o problema da proximidade com os ban­didos gananciosos, que sempre se alimentaram silenciosamente nos intestinos da política brasileira, é a tentação de se ter um pou­quinho mais, talvez só um pouquinho... Afinal, o que custa uma reforma, uma pequena ajuda por parte de empresas e empresários milionários?

Outro problema é que, quando você oferece dinheiro a um ban­dido para fazer isso ou aquilo – ainda que para realizar obras sociais –, você acaba vítima de chantagem, tendo sempre de dar mais e mais... Senão, torna-se vítima de delações, premiadas ou não.

E foi assim que, infelizmente, a previsão da curta novela de Ge­orge Orwell se realizou, de novo, e “socialistas”, que já tinham até mesmo abdicado desse título, passaram a atuar como capitalistas, degenerados pela necessidade de governar o país, pela tentação da vida boa e pela sedução do dinheiro. Era um mundo aparente­mente perfeito: obras sociais realizadas com dinheiro e procedi­mentos tortuosos retornavam na forma de votos, e todos, felizes, podiam viver em um padrão de vida que nunca imaginaram ter.

Poderia ser a eternização no poder. Ninguém iria acusá-los de serem “socialistas”, já que empresários estavam felizes, os políti­ cos, idem, uma vez que o povo melhorava sua situação, a nova esquerda usufruía de certo conforto e riqueza, e o país não estava apenas próspero, mas muito respeitado no exterior, pela primeira vez em sua história. O que poderia dar errado?

A primeira coisa que me passa pela cabeça é que não basta di­zer que não se é socialista para aplacar certo canibalismo da direita no trato dessas questões. É preciso realmente mostrar uma com­pleta abdicação de preocupações sociais. Para a direita, é “cada um por si e Deus por todos”.

A segunda questão é que a perpetuidade no poder é uma ilusão para os tolos. A psicanálise, na interpretação do mito de Édipo, demonstra que todo poder é fadado à destituição.

A terceira hipótese é que o Judiciário pode ter resolvido dar um upgrade na moralidade, mas aí tenho alguns temores, dos quais cito dois: 1) que ele queira moralizar apenas os socialistas no poder; (2) que os juízes se tornem tão prepotentes que todos os direitos de defesa, constitutivos da definição de democracia, passem a ser apenas figurativos.

A quarta situação que pondero é que o povo pode ter “acorda­do” e definido que não aceita nenhuma corrupção, a nenhum pre­texto, mas aqui também tenho um temor, compartilhado pelo psi­canalista Wilhelm Reich, no sentido de que as populações podem ser vítimas fáceis dos regimes autoritários. O prestigiado autor, na obra intitulada a “Psicologia de Massas do Fascismo”, levanta apre­ensões relevantes até hoje. Algumas delas são as seguintes: como foi possível o surgimento do fascismo, sendo ele não um pequeno movimento associado a Hitler ou a Mussolini, mas de amplas mas­sas? Como puderam as massas empobrecidas se alinharem a um discurso completamente contrário aos seus próprios interesses de classe? De toda maneira, não está absolutamente claro se o povo é contra toda corrupção ou só contra aquela praticada pela “esquer­da”. Isso porque o “clamor das ruas” parece conduzir para a desti­tuição desses governantes, praticada por políticos absolutamente corruptos e capazes de atos de uma vileza assombrosa.

Existem temores na intelectualidade brasileira – que se reúne hoje nas universidades, à revelia de qualquer atenção da impren­sa – de que esteja havendo um grande golpe da direita contra a esquerda em andamento e de que estejamos diante do fim trágico da última experiência socialista contemporânea. Isso estaria acon­tecendo a partir da manipulação das massas por uma imprensa tendenciosa e por um Judiciário que não guardaria equidistância entre os atores políticos em seus julgamentos. Há certa razão nes­sa apreensão.

Por outro lado, há fatos que apontam para a degeneração não de um projeto, mas dos valores daqueles que o criaram. Como re­solver isso? Parece-me que o julgamento dessa matéria não deve se dar pelo Congresso Nacional, e explico: não confio nos congressis­tas, quer decidam de uma forma, quer de outra. Acredito que aí os juízes seriam piores do que os julgados e dariam suas posições por compadrio, por sectarismo, por chantagem, por ódio e por todo tipo de conduta degenerada e indigna de respeito. Ninguém ali pensa no país, ou faz nada para ajudá-lo sem receber algo em troca.

Tenho uma grande preocupação com as afirmações que levam para a conclusão de que todos os socialistas são corruptos, de que todo projeto socialista está fadado ao fracasso e de que todas as bandeiras vermelhas devem ser queimadas, de preferência após o espancamento de quem as carrega. Assim, seria o fim dos sonhos de uma sociedade solidária, e restaria apenas “A Revolução dos Bichos”. Seria a consagração da sociedade dos gananciosos através de um discurso eminentemente fascista, e não poderíamos acredi­tar mais na possibilidade da bondade.

Se vamos combater a corrupção, vamos fazer isso sem perder­mos nossa integridade por condenar corrompidos de esquerda pelo machado de corruptos de direita. E vamos pedir também a prisão e o julgamento de políticos que façam oposição ao governo caso sejam criminosos. Se não o fizermos, me desculpem, é por­que somos corruptos também.

É a democracia parlamentar o sistema criado pelo nosso mo­delo capitalista e liberal para solucionar o problema dos governos ruins. Para isso, temos as eleições livres. Nesse modelo, partidos de diversos credos ideológicos se alternam no poder. Onde há cri­me, os criminosos são presos, mas não há condenação legal da ideologia dos partidos. O que é necessário é que se faça o julga­mento das urnas, da Justiça, e, mais tarde, da história, para todos nós, protagonistas deste momento.

* Crítico de arte, professor de judô, estudioso de direito, filosofia, sociologia, história e psicanálise




AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Mais. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Mais poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.