A chance de um recomeço
SAÚDE
Fotos: Muller Miranda
Conheça comoventes histórias de pessoas que ajudaram o próximo, autorizando a doação de órgãos de seus entes queridos, e de cidadãos que recuperaram a saúde após passarem por um transplante
Renata Nunes
FOI EM 2006, durante uma consulta médica de rotina, que começaram a aparecer os primeiros sinais de que algo estava errado com a saúde do motorista Fábio Luiz Gonçalves, 35. Com pressão alta, ele foi diagnosticado hipertenso e, após fazer exames mais específicos, descobriu o grave problema em ambos os rins. “A notícia foi um baque. De uma hora para a outra, fui informado que apenas 20% dos meus rins funcionavam. Desde então, iniciei a luta pela vida. Passei a fazer acompanhamento médico por um ano e meio para adiar o tratamento que eu tanto temia: a hemodiálise.” Após um ano e seis meses, o quadro clínico de Fábio piorou, e ele teve de ser internado no Hospital Regional de Betim para realizar um tratamento intensivo de filtragem no sangue.
Por três anos e meio, três vezes por semana, e durante quatro horas ininterruptas, ele se submeteu ao tratamento de hemodiálise, uma triste realidade vivenciada, atualmente, por 210 pessoas no Regional. “Durante o tratamento, minha pressão arterial ficava muito alta ou muito baixa em minutos. Sentia cãibras frequentemente, sem falar na constante sensação de enjoo e cansaço. Ficar quatro horas em uma cadeira, com o braço esticado para fazer hemodiálise, não é nada fácil”, afirma.
A esperança de ter uma vida saudável novamente veio somente quando Fábio aceitou fazer o transplante para receber um dos rins do irmão, Hélio de Souza Gonçalves Filho, 33. “Ver meu irmão livre da hemodiálise, levando uma vida normal, era um desejo que também me faria feliz. Queria acabar com aquele sofrimento. Ser um doador é um privilégio na vida de uma pessoa, ainda mais, sendo para um irmão”, comove-se.
No dia 15 novembro do mesmo ano, data do aniversário de Fábio, os irmãos foram internados no Hospital Universitário São José, em Belo Horizonte, e, dois dias depois, Fábio recebeu um novo rim. “Meu sentimento de gratidão a Deus e ao meu irmão será eterno. Ver minha vida renascer foi um milagre. O Hélio doou parte da vida dele para que a minha fosse restaurada. Só tenho que agradecê-lo e aos médicos, que, com dom e sabedoria, fizeram com que o procedimento fosse um sucesso. Não posso deixar de mencionar o apoio que também tive da minha esposa e dos meus pais, que foram fundamentais”, salienta o motorista. Hoje, três anos após o transplante, Fábio leva uma vida totalmente normal.
AMOR QUE FORTALECE
Outro emocionante gesto de amor e de solidariedade entre irmãos é a da dona de casa Maria de Fátima dos Santos Soares, 60, e de sua irmã, Lourdes Aparecida dos Santos Souza, 49. Com a insuficiência renal provocada por causas desconhecidas, apenas 30% dos seus rins funcionavam, situação que também a levou a fazer diálise durante três anos. A esperança de vida veio somente quando ela descobriu a compatibilidade com a irmã, que se prontificou a doar um dos seus rins. “Sempre quis ser doadora e, vendo todo o sofrimento de minha irmã, ofereci doar um dos meus rins. Só assim ela poderia voltar a ter uma vida saudável e tranquila”, diz Lourdes.
Inicialmente, Maria de Fátima resistiu. “Fiquei com medo de que acontecesse algo ruim com a Lourdes. Eu não me perdoaria.” O que ela não sabia é que a cirurgia de transplante de rim não causaria malefícios para a irmã. “Os doadores vivos de rim mantêm a vida normal e saudável após a doação, mas também precisam fazer acompanhamento médico para avaliação periódica do único rim funcionante que possuem, inclusive, para prevenir adequadamente eventuais doenças que possam comprometer seu órgão”, explica a médica e coordenadora da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital Regional, Paula Perdigão. “Após ser esclarecida sobre isso, mudei de ideia e, em 2011, o transplante aconteceu. Mas, antes disso, fiquei na fila de espera durante um ano”, revela Mária de Fátima.
Depois do transplante, o vínculo afetivo e o amor entre as irmãs, que já eram grandes, fortaleceram-se ainda mais. Mais que isso, Maria de Fátima aprendeu a importância de ser uma doadora. “Quando meu filho morreu, há 16 anos, fui contrária à doação dos órgãos dele. Fiz isso por ignorância. Hoje, depois de tudo o que passei, vejo o quanto a doação é importante”, salienta Maria de L ourdes.
No Brasil, 92% das cirurgias de transplantes realizadas são custeadas por um programa público. Em número de procedimentos feitos anualmente, o país só perde para os Estados Unidos. Em Minas Gerais, por exemplo, somente de janeiro a maio deste ano, 880 mineiros ganharam vida nova graças à doação de órgãos. Mas, mesmo diante do sucesso do programa brasileiro, mais de 70 mil pessoas aguardam na fila do transplante. No Estado, segundo dados do MG Transplantes, atualmente existem 2.376 mineiros à espera de um órgão. “Para que a doação aconteça, é necessário o órgão ser viável. Um dos grandes entraves é achar pacientes com diagnóstico de morte encefálica, ou seja, o coração estar batendo, mas a pessoa não tem mais atividade do sistema nervoso central. Essa é a condição essencial para a doação”, explica Paula Perdigão.
O corpo de uma única pessoa pode salvar várias vidas e beneficiar uma pessoa doente, caso órgãos como coração, pulmão, pâncreas, rins, fígado, ossos e córneas sejam partilhados. Já no caso da doação em vida, a compatibilidade sanguínea é primordial. Há também testes especiais para selecionar o doador que apresenta maior chance de sucesso. Os doadores vivos são aqueles que partilham um órgão duplo, como o rim, uma parte do fígado, o pâncreas, o pulmão, ou um tecido como a medula óssea. Contudo, esse tipo de doação só acontece se representar o mínimo de risco à saúde da pessoa que doa. “As doações intervivos ocorrem mais frequentemente entre familiares, pela maior possibilidade de compatibilidade entre eles”, esclarece coordenadora da OPO, Paula Perdigão.
Segundo ela, os casos dos irmãos Fábio e Hélio e das irmãs Lourdes e Maria de Fátima nem sempre refletem a realidade do transplante de órgãos no Estado. “A lista de espera por um rim em Minas é bem maior do que a demanda. Em 2013, por exemplo, 535 órgãos foram doados no Estado, em contrapartida, 2.053 pessoas aguardavam por um rim no mesmo período”, diz a especialista.
Para aqueles que estão na fila de espera, o motorista Fábio Gonçalves afirma que o importante é não desanimar. “Sempre busquei força em Deus. Quando passei pela fila de espera, tinha a certeza de que meu dia chegaria. Só o que tenho a dizer é para as pessoas não desanimarem, nem se entregarem à doença. Façam também sua parte, tomando as medicações corretamente e ficando sempre atento às orientações dos especialistas, para que, quando chegar a sua hora de fazer o transplante, você esteja preparado”, reforça.
UM NOVO OLHAR
Quem também nunca desistiu de receber um órgão e poder, assim, começar uma vida nova é a administradora Jezebel Gomes da Silva, 32. Aos 14 anos, ela foi diagnosticada com ceratocone, uma doença progressiva congênita que pode causar a perda da visão. Dificuldades para visualizar o que professor escrevia no quadro em sala de aula e para dirigir, principalmente, à noite, eram constantes na vida dela. Até que, em 2009, a necessidade de receber um transplante de córnea ficou evidente. “Já não enxergava bem e, de repente, surgiu uma mancha branca no meu olho direito. Passei a ver as imagens esbranquiçadas e apenas vultos”, conta.
A notícia de que precisava de um transplante de córnea deixou a administradora assustada. Durante um ano, ela aguardou na fila de transplante de córnea e, quando finalmente chegou a sua hora, o medo falou mais alto. “Da primeira vez que fui chamada para o transplante, não aceitei. Estava com receio e insegura. Mas, em 2012, como minha visão piorou mais, tomei coragem e aceitei fazer o procedimento”, revela. A cirurgia durou cerca de uma hora e meia e Jezebel teve alta no mesmo dia. “Foi um procedimento tranquilo e rápido”, afirma.
A alegria de ter um futuro melhor é comemorada pela administradora, que alerta para a importância da doação. “É fundamental autorizar, em vida, a doação de órgãos para garantir que as pessoas que estão na fila de espera possam ter uma vida normal e uma esperança no futuro. Todos os dias, peço a Deus que abençoe a família que autorizou a doação da córnea do parente falecido para mim. Se não fosse por esse ato de amor ao próximo, eu não estaria aqui hoje, transplantada, enxergando bem e muito feliz”, salienta.
Há cerca de dois meses, em Betim, o Hospital Regional conta com o empenho e a dedicação de uma equipe de profissionais que fazem a captação de órgãos na unidade. A Organização de Procura de Órgãos (OPO) é formada por uma médica e dois enfermeiros capacitados para identificar potenciais doadores e apoiar todo o processo de doação das famílias. E a atuação deles, que também tem como objetivo aumentar o número de órgãos doados no Estado, tem dado certo. Desde maio, por exemplo, 34 córneas foram doadas. “São 34 pessoas que foram beneficiadas e puderam, talvez, voltar a enxergar”, salienta a médica Paula Perdigão. “Essa conquista somente foi possível com a colaboração dessas famílias. Cada vez mais, as pessoas estão se conscientizando da importância de doar, um ato de amor que salva vidas.”
A VIDA DE PRESENTE
Foi esse desejo de fazer o bem ao próximo que motivou a família da fotógrafa Renata Chaban Garcia, 24, a optar pela doação dos seus órgãos. Em 1998, ela morreu de forma repentina, em um acidente de carro que abalou toda a família. “Ela estava em uma estrada perto de Governador Valadares, voltando do trabalho, com o marido. Já era madrugada e chovia. Por causa de outro acidente ocorrido na estrada, a Polícia Rodoviária Federal teve de fechar um lado da pista. O último carro da fila, que se formou com essa retenção, era um caminhão. O motorista parou o veículo, porém, não ligou pisca-alerta. Com a chuva e o cansaço, o marido da minha irmã, que estava ao volante, não viu a pista parada e bateu na traseira do veículo. Ele morreu na hora e minha irmã foi levada ainda com vida para o hospital, mas em estado gravíssimo. Ela ficou internada no CTI, porém, um dia depois do acidente, foi comprovada a sua morte cerebral”, conta a irmã de Renata, Waleska Chaban, 40.
Apesar de desolados e de estarem vivendo um dos piores momentos de suas vidas, os familiares não deixaram de lado o sentimento de solidariedade e, com o intuito de ajudar a renascer outras vidas, autorizaram a doação dos órgãos da fotógrafa. “Não me lembro se a Renata já havia manifestado o desejo de doar seus órgãos, mas ela gostava de ajudar as pessoas. Por isso sabemos que fizemos a coisa certa. Não consigo imaginar uma contribuição maior para alguém do que doar um dos órgãos para outra pessoa”, diz Waleska.
Renata teve os rins, as duas córneas e o coração doados. O senhor com idade avançada que recebeu o seu coração não sobreviveu. Já uma criança com problemas mentais que recebeu suas córneas recuperou a visão. “Conhecemos a família dessa criança. Foi muito gratificante, mesmo diante da dor da perda, podermos nos alegrar em ajudar alguém”, afirma a mãe de Renata, Sônia Chaban, 68.
O louvável gesto da família da fotógrafa, porém, não é partilhado por grande parte dos brasileiros. Mesmo nos dias atuais, apesar de todas as campanhas de esclarecimento, ainda há muita desinformação sobre o assunto, o que impede a evolução do número de transplantes. “Deixamos bem claro para os familiares que a decisão de doar é deles. Fazemos nossa parte, explicando todos os procedimentos, mas, às vezes, a negativa fala mais alto, pois há conflito entre os familiares, que não entram em um consenso”, afirma a médica Paula Perdigão. “Também estão entre os motivos de algumas famílias não autorizarem a doação não saberem se o ente querido gostaria que seus órgãos fossem doados, por crenças religiosas, por desconhecerem o processo de doação e pelo tempo necessário para que o procedimento aconteça”, completa.
No ranking dos transplantes realizados em Minas Gerais, está a doação de córnea, tecido que pode ser retirado até seis horas após a morte da pessoa. Segundo dados do MG Transplantes, entre 2012 e maio deste ano, foram realizadas 3.345 cirurgias desse tipo. Rim e fígado aparecem em segundo e terceiro lugares, com 1.345 e 221, respectivamente. O transplante de coração assume a quarta posição, com 77 cirurgias, e de pulmão é o menos frequente, com apenas três casos. “O principal motivo desse entrave é que, para realizar a doação do pulmão e do coração, é necessário fazer exames mais complexos na pessoa que faleceu e, em alguns casos, o hospital onde o paciente foi a óbito não dispõe de equipamentos suficientes para realizar esses exames”, explica a especialista.
A RENOVAÇÃO
O comerciante Túlio Agostinho Cândido, 46, também recebeu um presente que salvou a sua vida. Após ter sido diagnosticado com cirrose hepática, adquirida por fatores genéticos, a necessidade de um transplante de fígado foi eminente. “O médico falou que, se não fizesse o procedimento, eu morreria.” A espera pelo órgão durou 11 meses e, em 2012, ele foi transplantado. “Não tive problemas com rejeição e tive uma recuperação tranquila, graças a Deus, embora tenha precisado tomar muitos medicamentos logo depois do transplante”, lembra.
Hoje, um ano e sete meses após a cirurgia, ele leva uma vida normal. “Mas preciso ter cuidado com meu peso e com minha alimentação. Também tomo seis medicamentos ao dia, contra a rejeição, que não afetam meu desempenho diário.” Emoção e gratidão são os sentimentos de Túlio em saber que uma família, mesmo em um momento de dor profunda, teve a generosidade de dar a ele a oportunidade de continuar vivendo. “Ganhei qualidade de vida. Melhorei corpo, alma e mente”, revela. “Não tenha medo de doar os órgãos, nem em vida, nem quando morrer. Certamente, sua generosidade dará a oportunidade de pessoas continuarem a viver e refazerem suas histórias. E podem ter certeza de que o MG Transplantes é um dos órgãos mais sérios e competentes que existe para isso”, aconselha Túlio.