A cultura do nascer
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
Pintura O Parto, de Paz Treuquil, pintora da regiu00E3o de Catambria, Espanha/ Reprodução IInternet
A HISTÓRIA DA HUMANIDADE está envolta na relação entre a cultura e o mistério. Somos o que compreendemos, mas também aquilo que procuramos entender, muitas vezes, sem qualquer chance, porque não passamos de partículas em universos infinitamente maiores que nós.
A vida e a morte sempre estiveram no centro do mistério da existência humana. E foi talvez assim que tenham surgido nossas inúmeras religiões, com a promessa da vida eterna. Não é então banal que o nascimento seja uma celebração da vida, de nossa perpetuação enquanto espécie, e que, em muitas culturas antigas, esteja vinculado a ritos mágicos, que só poderiam ser praticados por pessoas iniciadas. Ao longo de toda a história, curandeiros, feiticeiros e sacerdotisas surgiram como personagens que auxiliaram as mulheres a enfrentar as dores na hora do parto.
A associação, metafísica, feita entre a dor e o mal, e que levou a nossa história à prática de castigos físicos, e a nossa cultura a associar os infernos das diversas religiões com a tortura e a imposição de sofrimentos “físicos” como punição para os nossos pecados morais, criou uma medicina voltada para o combate à dor. A dor, mais ainda que a doença, é a inimiga da medicina moderna. E a morte sem dor, neste contexto, é até mesmo uma bênção.
Assim, as sacerdotisas, os xamãs, depois, as parteiras, os sacerdotes, os barbeiros-cirurgiões e as enfermeiras-obstetras foram substituídos, pouco a pouco, pelos médicos modernos.
Para tratar do assunto, importante salientar que o principal objetivo do parto era a vida do nascituro, e que a vida da parturiente – ainda mais quando se tratasse de filho homem – era considerada, em muitas culturas, de importância secundária.
Foi assim que as mulheres foram perdendo ao longo do tempo o direito de influir nas condições de realização do parto, e que a posição natural, de cócoras, foi sendo substituída por posições menos naturais para o nascimento do filho, de forma que o profissional encarregado do parto pudesse melhor realizar o seu ofício.
A “medicalização” do parto, a introdução, a generalização e a banalização das cesarianas, levadas para o ambiente estéril de uma sala hospitalar, surgiu com o grave problema de generalizar a crença de que a gravidez (e, com ela, o parto) é quase uma doença associada à gravidade da dor. E esconde algo sério: o fato de que o risco cirúrgico é – no mais das vezes – maior que o do parto natural.
Essa ojeriza à dor mistifica ainda o entendimento de que, no momento do parto natural, há muito prazer para a mãe. Mas, no meu sentir – e tenho que expressá-lo –, aquelas luzes brancas, os uniformes e as máscaras sepultam os sons de tambores antigos que anunciam a vida que surge, como a mágica sempre além da cultura humana e um dos seus maiores mistérios!
* Crítico de arte, estudioso de direito, filosofia, sociologia, psicanálise e professor de judô