A cultura do nascer

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

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Criado em 14 de Novembro de 2014 Cultura

Pintura O Parto, de Paz Treuquil, pintora da regiu00E3o de Catambria, Espanha/ Reprodução IInternet

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A HISTÓRIA DA HUMANIDADE está envolta na relação entre a cultura e o mistério. So­mos o que compreendemos, mas também aquilo que procuramos entender, muitas vezes, sem qualquer chance, porque não passamos de partículas em universos infi­nitamente maiores que nós.

A vida e a morte sempre estiveram no centro do mistério da existência humana. E foi talvez assim que tenham surgido nossas inúmeras religiões, com a promes­sa da vida eterna. Não é então banal que o nascimento seja uma celebração da vida, de nossa perpetuação enquanto espécie, e que, em muitas culturas antigas, esteja vinculado a ritos mágicos, que só pode­riam ser praticados por pessoas iniciadas. Ao longo de toda a história, curandeiros, feiticeiros e sacerdotisas surgiram como personagens que auxiliaram as mulheres a enfrentar as dores na hora do parto.

A associação, metafísica, feita entre a dor e o mal, e que levou a nossa histó­ria à prática de castigos físicos, e a nossa cultura a associar os infernos das diversas religiões com a tortura e a imposição de sofrimentos “físicos” como punição para os nossos pecados morais, criou uma medicina voltada para o combate à dor. A dor, mais ainda que a doença, é a inimiga da medicina moderna. E a morte sem dor, neste contexto, é até mesmo uma bênção.

Assim, as sacerdotisas, os xamãs, de­pois, as parteiras, os sacerdotes, os bar­beiros-cirurgiões e as enfermeiras-obste­tras foram substituídos, pouco a pouco, pelos médicos modernos.

Para tratar do assunto, importante sa­lientar que o principal objetivo do parto era a vida do nascituro, e que a vida da parturiente – ainda mais quando se tra­tasse de filho homem – era considerada, em muitas culturas, de importância se­cundária.

Foi assim que as mulheres foram per­dendo ao longo do tempo o direito de influir nas condições de realização do par­to, e que a posição natural, de cócoras, foi sendo substituída por posições menos na­turais para o nascimento do filho, de forma que o profissional encarregado do parto pudesse melhor realizar o seu ofício.

A “medicalização” do parto, a introdu­ção, a generalização e a banalização das cesarianas, levadas para o ambiente esté­ril de uma sala hospitalar, surgiu com o grave problema de generalizar a crença de que a gravidez (e, com ela, o parto) é quase uma doença associada à gravidade da dor. E esconde algo sério: o fato de que o risco cirúrgico é – no mais das vezes – maior que o do parto natural.

Essa ojeriza à dor mistifica ainda o entendimento de que, no momento do parto natural, há muito prazer para a mãe. Mas, no meu sentir – e tenho que expressá-lo –, aquelas luzes brancas, os uniformes e as máscaras sepultam os sons de tambores antigos que anunciam a vida que surge, como a mágica sempre além da cultura humana e um dos seus maiores mistérios!

* Crítico de arte, estudioso de direito, filosofia, sociologia, psicanálise e professor de judô




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