A felicidade compartilhada
Derrubando padrões e imposições sociais, pessoas sem vínculo conjugal se unem para ter e criar filhos
Iêva Tatiana
Há quatro anos, Luiza Valentim, de 29, ainda não conhecia o termo “coparentalidade”, mas já o colocava em prática com a melhor amiga, Graziele. Elas não tinham um relacionamento romântico, mas decidiram realizar um sonho em comum: ter um filho e compartilhar a criação dele, justamente o que define essa configuração familiar alternativa. A ideia, que começou como uma brincadeira, ficou séria quando Luiza, que passava por um processo de transição de gênero com hormônios, descobriu que ficaria estéril depois de se tornar uma mulher transexual. De uma relação de amizade e cumplicidade, então, nasceu Hael, de 4 anos.
“A maternidade é intensa, alegre a maior parte do tempo, a melhor coisa que já fiz na minha vida. É muito bom olhar para ele todo dia, vê-lo crescer. Se não fosse minha transição, eu poderia pensar em desenvolver mais estrutura para ter um filho, mas aquele era o momento. Ele é uma sorte e um privilégio, mais um dos que eu tenho. Infelizmente, a maioria das mulheres trans é privada de ter família”, ressalta Luiza.
Hael vive com ela na Serra do Cipó, distrito de Santana do Riacho, na região Central de Minas Gerais. Nos fins de semana, ele vai para a casa de Graziele, em Belo Horizonte. O compartilhamento da guarda não foi acertado judicialmente, mas acordado de maneira informal entre as amigas, e vem dando muito certo, segundo Luiza.
“Ele considera esta a casa dele, onde passa a maior parte do tempo. Lá é a casa da ‘mamãe Grazi’, como ele diz. Creio que, no futuro, quando ela quiser ficar mais tempo com o Hael, a gente vai ter que se ajustar, para ele não sofrer uma ruptura brusca”, diz a mãe, confessando que já se prepara para a chegada desse momento. “Aqui não tem nada, é igual a uma roça. Com certeza, a capital vai parecer mais atrativa para ele”, completa.
Viralizando
Embora a coparentalidade ainda cause estranhamento em algumas pessoas, ela vem sendo potencializada e, consequentemente, popularizada por meio da internet. Nas redes sociais, por exemplo, é possível encontrar grupos que se dedicam ao tema com exclusividade e reúnem pessoas interessadas em ter filhos sem a necessidade de viverem um relacionamento amoroso ou até mesmo sexual, uma vez que a criança pode ser adotada ou concebida por fertilização in vitro, inseminação artificial ou até pela chamada “inseminação caseira”, quando o esperma é introduzido pela própria mulher com a utilização de uma seringa.
O site Pais Amigos foi pioneiro nessa proposta. Originalmente um grupo de Facebook, ele cresceu e ganhou vida própria. Os realizadores da iniciativa se definem como “pessoas em constante evolução, desconstrução de preconceitos e com muito respeito à diversidade e à individualidade do próximo”. “Defendemos o direito à autonomia do ser humano, acima de tudo, e o de reprodução com responsabilidade e planejamento”, dizem os criadores do projeto.
Na plataforma online, os interessados em ter uma família coparental se cadastram e buscam parceiros com os quais sintam afinidade para terem e criarem um filho.
Aspecto legal
O advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em direito de família e sucessões, é consultor do Pais Amigos e acabou se tornando referência no assunto. Tudo começou quando ele foi procurado, há dez anos, para fazer um contrato de geração de filho para duas pessoas que não queriam ter relação conjugal nem sexual. De lá para cá, com as facilidades que a internet trouxe para unir interessados na coparentalidade, ele se especializou na área.
“Essa história começou a partir do momento em que o direito – e as pessoas, em geral – começou a separar conjugalidade de parentalidade. Ou seja, ter filhos não significa, necessariamente, que é preciso se casar. E, diante da evolução da engenharia genética, nem mesmo é necessário ter relação sexual”, explica o advogado.
No Brasil, o termo “coparentalidade” surgiu há cerca de cinco anos. Até hoje, não existe nenhuma regulamentação para as famílias coparentais, tampouco há proibições. A utilização da inseminação caseira – muito comum nesses casos – também não contraria nenhuma lei, de acordo com Pereira.
Apesar de a decisão de ter um filho dentro desse modelo de constituição familiar normalmente ser amigável, o advogado orienta as pessoas a tomarem alguns cuidados. “Aconselho fazer um contrato escrito para tratar de todos os assuntos relativos à criação e à educação de filhos, inclusive os financeiros”, enfatiza.