A força de jogos Tradicionais
Xadrez, dama, truco e dourado perduram em grandes centros urbanos como atividades de lazer e cultura, fazendo parte do registro visual desses lugares
João de Souza é responsável pelo ponto que fica na avenida Amazonas entre as ruas dos Carijós e São Paulo; com a autorização da prefeitura, ele aluga os tabuleiros para os jogadores
Viviane Rocha
O trânsito, milhares de pessoas em movimento e os sons tipicamente urbanos não favorecem a concentração e o raciocínio rápido. Mas é justamente no caos de uma metrópole como Belo Horizonte e de uma grande cidade como Betim que dezenas de jogadores de xadrez, dama, truco e dourado praticam as modalidades. O primeiro cenário de nossa reportagem é a Praça Sete, símbolo do hipercentro da capital mineira. Sob os olhos atentos de João de Souza, 54 anos, a tradição é perpetuada. João veio do Rio de Janeiro para BH e, como admirador dos jogos de inteligência e de concentração, interessou-se pela atividade realizada num dos pontos mais movimentados da cidade.
João frequenta o local de segunda a sexta há 16 anos. “Sempre entre 13h e 20h, estou presente”, diz. Mas não é somente o gosto que o motiva a fazer esse trajeto quase que diariamente. É que ele é responsável pelo ponto de jogo que fica na avenida Amazonas entre as ruas dos Carijós e São Paulo. Com a autorização da Prefeitura de Belo Horizonte, ele aluga os tabuleiros utilizados nos jogos, também conhecidos como “Sapos”, apelido dado às pessoas que ficam de fora dando palpites nas jogadas.
O salto de jogador a proprietário dos tabuleiros se deu de uma maneira curiosa. “Quando comecei a jogar aqui, uma moça é quem alugava os tabuleiros. Nós nos interessamos um pelo outro e passamos a morar juntos”, revela. Hoje sua namorada, Raquel do Prado, também de 54 anos, transferiu a responsabilidade dos tabuleiros para João. “Agora, raramente ela frequenta a praça”.
O aluguel dos tabuleiros por hora custa R$ 1,50, segundo o fiscal, que contabiliza de 50 a 80 pessoas no espaço de lazer por dia. “Tem gente que vem diariamente; já outros, duas vezes por semana”, detalha. A faixa etária predominante do público que vai ao local é a da terceira idade.
BENEFÍCIOS PARA A MENTE
Entre as mulheres que aderiram à prática está a biomédica Tatiana Flávia Pinheiro, de 30 anos. “Sempre tive interesse pelo xadrez e cheguei a jogar algumas vezes. Resolvi retomar a atividade aqui, na Praça Sete, por incentivo de duas amigas que também jogam”, conta. Tatiana usa o jogo como uma atividade de lazer e de auxílio nos estudos para concurso público. “Sem dúvida, o xadrez é um jogo intelectual que contribui para a melhoria da memória, da concentração e do raciocínio”, ressalta. Para ela, é um desafio disputar com jogadores mais experientes e estrategistas. “Estou me programando para jogar aqui, no mínimo, uma vez por semana”.
Outro frequentador do espaço é um grande representante do xadrez profissional do Estado de Minas Gerais, o jornalista Frederico Gazel, de 29 anos. Desde os 9, por influência de um tio, ele pratica a modalidade. “Aos 12 anos, comecei a estudar o xadrez mais profundamente e também a participar de competições”, conta. Hoje, coleciona inúmeros títulos, entre eles o de campeão mineiro, conquistado aos 22 anos. As inúmeras vitórias renderam ao enxadrista uma titulação vitalícia, a de mestre de xadrez da Federação Internacional de Xadrez (Fide em francês). Atualmente, além de competir, Frederico é professor de xadrez em colégios particulares da capital. Ele aproveita algumas oportunidades que têm para ir à Praça Sete cumprimentar os frequentadores e disputar algumas partidas. “Trata-se de um ícone da paisagem urbana de Belo Horizonte, reunindo gente das mais diversas origens e com distintos níveis de conhecimento. Sem dúvida, faz parte do registro visual da cidade”, afirma.
TRADIÇÃO
Os jogos de damas e de xadrez foram implantados na praça na década de 70. Naquela época, os jogadores levavam o seu próprio material. “Todos os fundadores já faleceram”, lamenta João de Souza. Hoje, outros pontos da praça recebem jogadores, como a rua Rio de Janeiro e a avenida Afonso Pena.
João explica que tanto as damas quanto o xadrez são jogos de inteligência, que exigem concentração e raciocino lógico rápido. Todavia, eles apresentam grandes diferenças. “Ambos necessitam do mesmo tabuleiro, mas o xadrez tem valores de hierarquia, que devem ser respeitados. Já o jogo de damas possui dois exércitos potencialmente iguais que duelam entre si e cujo vencedor é aquele que captura mais peças do adversário”, esclarece.
TRUCO
Nosso segundo cenário de jogos também já se transformou em ponto de tradição na cidade: é a praça da igreja São Cristóvão, no bairro Angola, em Betim, onde um grupo de amigos de longa data se reúne também de segunda a sexta, às 15h. No local, os colegas não jogam papo fora; disputam truco e dourado. O costume já dura mais de três décadas, e, conforme explica o fundador da prática, Sílvio Félix da Silva, de 78 anos, a tradição surgiu de forma espontânea. “Nós ficávamos na calçada, jogando truco, modalidade que envolve quatro jogadores, cada um com quatro cartas. Aos poucos, novos amigos se juntaram, e o grupo cresceu”, relembra. Hoje, 15 jogadores fazem parte da turma, que é bastante organizada e que também joga dourado, com oito jogadores. “A dupla que perde deixa a vaga para a dupla que espera a sua vez de jogar”, detalha Sílvio.
Frequentador do grupo há três anos, Domingo Alves, 77, conta que eles têm regras bem-definidas. “Não acontecem apostas, e não aceitamos nenhuma conduta agressiva; aqui, respeito entre os jogadores é primordial”, ressalta Domingos. Uma taxa de R$ 10 é cobrada de cada membro para a compra das cartas e dos acessórios, e para custear uma confraternização periódica dos amigos em um sítio. “Sempre temos um encontro mais caprichado para celebrarmos nossa amizade e jogarmos mais um pouquinho”, brinca Geraldo Augusto, 85, participante há mais de 15. “Quando alguém manifesta vontade de entrar para nosso grupo, a gente se reúne para avaliar a conduta dessa pessoa perante a sociedade e, assim, aprovar ou não seu ingresso na equipe”, diz Ivo Rezende. E, caso as regras não sejam respeitadas, o novo integrante é convidado a retirar-se. “Infelizmente, já tivemos situações assim”, revela Domingos.
A tradição já está tão enraizada na rotina e na cultura do bairro Angola que conta com o apoio dos comerciantes da região. Há, por exemplo, um dono de bar que empresta a mesa e as cadeiras para que os jogadores possam acomodar-se.
Ao serem entrevistados, os jogadores não esconderam certa nostalgia. “Muitos companheiros já faleceram, e, ao longo de nossa trajetória, vimos Betim mudar muito”, lamenta Geraldo Augusto. “Enquanto estivermos vivos e com saúde, estaremos aqui para não deixarmos a nossa tradição se perder”, arremata Sílvio.
CELEIRO DE ENXADRISTAS MIRINS
Em Betim, não só o truco e o dourado se mantêm como práticas ativas. Por aqui, o xadrez também é bastante jogado, e alguns dos responsáveis por perpetuarem a modalidade são enxadristas mirins, que vêm conquistando títulos importantes. O mais recente campeão é o pequeno Gustavo Basílio, de apenas 7 anos. Ele se tornou campeão mineiro na categoria Sub 8 de forma invicta. A disputa ocorreu no início de março, na capital mineira. Apesar da pouca idade, Gustavo já foi campeão do Circuito Mineiro de Xadrez e, no ano passado, ficou em terceiro lugar no campeonato nacional. A paixão do pequeno jogador começou por incentivo dos pais, o funcionário público Elton Basílio, 30 anos, e a nutricionista Arminda Basílio, 34. “Desde os seus 3 anos, nós dávamos a ele atividades relacionadas ao xadrez, como temas para colorir e as próprias peças, para ele se familiarizar com o esporte”, conta o pai. Aos 5, Gustavo começou a se aprofundar no xadrez e deu início à sua participação em uma série de competições, inclusive no campeonato brasileiro da modalidade.
Gustavo não esconde a satisfação do reconhecimento de seu talento e revela sua rotina de treinamentos. “Eu chego da escola, descanso 30 minutos e treino cerca de duas horas por dia”. Além disso, semanalmente o enxadrista recebe orientações do mestre José Nery. “O treinamento é feito pela internet”, informa o pai, que ajuda o filho a complementar seus conhecimentos ofertando leituras sobre o tema, softwares e jogos online direcionados ao aperfeiçoamento da técnica, além de competir com ele. Os próximos compromissos de Gustavo já estão marcados. Em abril, ele participará do campeonato brasileiro – que será realizado em São Sebastião do Paraíso (MG) –, para o qual tem objetivos ambiciosos: “Quero uma vaga no campeonato pan-americano e também no mundial”, entrega.
Outros dois jogadores betinenses começaram cedo, assim como Gustavo. Matheus Guedes e Lucas Lêus, de 17 e 21 anos respectivamente, iniciaram-se no xadrez ainda crianças. O incentivo veio dos pais, a jornalista e empresária Consolação Resende, 50, e o fotógrafo João Lêus, 54. “Meu marido e eu sempre gostávamos de jogar”, relembra Consolação.
Matheus começou a competir com 13 anos e, somente entre 2012 e 2016, contabiliza mais de dez títulos importantes, entre eles o de primeiro lugar no Campeonato Mineiro da Juventude por duas vezes. “O xadrez me ajudou no desenvolvimento da memória e do raciocínio, além de ter me permitido conhecer várias pessoas”, conta o garoto. E o que ele diz se confirma com a oitava colocação conquistada na Olimpíada Brasileira de Informática, pela qual ganhou um curso de programação avançada da Unicamp, em São Paulo. Atualmente, Matheus é presidente do Clube de Xadrez do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).
Aos 6 anos, Lucas aprendeu a jogar xadrez e logo foi se revelando um excelente enxadrista. De lá para cá, só soube colecionar títulos, troféus e medalhas, tendo sido três vezes campeão brasileiro e várias vezes campeão mineiro, além de ter obtido excelentes colocações em torneios mundiais – esteve presente em um mundial de xadrez realizado em Caldas Novas (MG) e em um pan-americano promovido em Bogotá, na Colômbia. O garoto acredita que o xadrez é o responsável por sua percepção estratégica. “Quando jogamos xadrez, nosso cérebro aprende a ser estratégico. Ou seja, a mente antecipa as jogadas,” revela Lucas, que diz ter muita facilidade com os números também. “O raciocínio lógico é importante para a matemática e é muito desenvolvido quando se joga o xadrez”, comenta. Hoje em dia, o jovem é cadete da Academia Militar do Exército, em Resende (RJ), e, depois de ter ganhado um concurso de artigos acadêmicos entre os quase 600 estudantes, abordando o tema “O uso do xadrez como estratégia de guerra”, o comando aceitou a implantação do xadrez na instituição. Neste ano, portanto, Lucas está criando o Clube de Xadrez da Aman.
SAIBA MAIS
Damas: trata-se de um jogo de tabuleiro praticado por duas pessoas, que dispõem cada uma de 12 peças, sendo elas brancas e pretas. Os jogadores têm 64 casas para mover as peças, sendo que o objetivo é capturar ou imobilizar as do adversário. O jogador que consegue “comer” todas as peças do oponente ganha a partida.
Xadrez: esse jogo de tabuleiro também é disputado entre dois participantes, chamados de enxadristas ou xadrezistas, que, assim como nas damas, utilizam peças de cores opostas, geralmente pretas e brancas. Da mesma maneira, há 64 casas para a mobilidade das peças: oito peões, duas torres, dois cavalos, dois bispos, uma rainha e um rei. O objetivo do jogo é conquistar o rei do adversário.
Truco: é um jogo de cartas que pode ser disputado por dois, quatro (duplas) ou seis (trios) pessoas. Existem muitas variações da prática Brasil afora, mas, em geral, trata-se de uma disputa de três rodadas, a chamada “melhor de três”, para se descobrir quem tem as cartas de valor simbólico mais alto. O objetivo é completar 12 pontos, ou tentos. São comuns também jogos de 15 pontos.
Dourado (ou douradão): São dois times, compostos cada de quatro jogadores. Vence aquele que faz oito quedas. O jogo tem um número de cartas com valor maior do que as do truco. Aqui, além das usadas na modalidade anterior, as que possuem valor maior são o coringa e o letrado, o 2, o 10, o valete, a dama, o rei e o ás de ouros.