A nobre arte da Cutelaria
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
Fotos: Divulgação
AO SE AFASTAR DA IDADE da pedra e iniciar o período da dominação do fogo, a humanidade aprendeu a manipular os metais. A evolução dessa arte para a construção de utensílios, ferramentas e armas foi definitiva para a sobrevivência e a evolução da espécie humana. Dentro disso, a cutelaria, armiaria ou armoaria é a arte ou ofício do cuteleiro ou cutileiro, armiário, armoário ou acerador, ou seja, a pessoa que fabrica ou vende instrumentos de corte. São produtos da cutelaria, portanto, espadas, adagas, facas, facões, machados, punhais, navalhas e todos os utensílios metálicos de corte.
Na história dessa arte, praticada, antigamente, por pessoas humildes, que se ajoelhavam diante de reis, temos as lendárias katanas (pronuncia-se catanás); as espadas de Toledo, dos nossos romances medievais, os punhais feitos para príncipes e princesas e os espadachins lendários.
A história dessas lâminas começou com o cobre, passou pelo estanho, bronze e ferro – que queimava a temperaturas mais baixas na fundição. Porém, com o desenvolvimento das técnicas de uso do fogo, das ligas metálicas e da dobradura do metal (inicialmente, com bigorna e martelo), surgiram várias qualidades de aço e peças cada vez mais expressivas.
Em todos os países do mundo, atualmente, realizam-se periodicamente encontros em que mestres cuteleiros apresentam suas principais peças. No Brasil, o mais importante é a Mostra Internacional de Cutelaria, promovida anualmente em São Paulo e que em sua última edição reuniu nomes como Dionatam Franco, Celso Luiz Fernandes, Rodrigo Sfredo, Silvana Mouzinho, Sandro Boecck, Ricardo Vilar, Alessandro Cicliani, André Klen, Cássio Becker, Facundo Montenegro, Luiz Gustavo Gonçalves, Marcos Cabete, Ronaldo Francescchi, Tiago Silva, Victor Farias, João Batista, Alexandre Bianco, Eduardo Berardo, Pedro Lopes, Luis Carlos Serapião, Kleber Reche Garcia, Andrey Navarre, Helio Boeck, Yuri Fernandes, Peter Hammer, Samir Haddad, Toma, Rick Lala, Edwin Weiler, Celso Nogueira, Alexandre Maranhão, Nestor China e Remo Nogueira.
Como se vê, há diversos cuteleiros artesãos no Brasil, que produzem material de excelente qualidade, sendo reconhecidos internacionalmente, a exemplo de Rodrigo Sfreddo, que em 2009 recebeu pela American Bladesmith Society o título de Master Smith, o primeiro da América Latina. Na ocasião, Sfreddo empatou duas de suas peças em primeiro lugar e foi premiado com o B.R. Hugues Award, concedido à melhor faca submetida a julgamento pelos aspirantes ao título.
Na cutelaria, como nas artes, a produção artesanal, mesmo quando diminuta, tem status de artigo de luxo, único, sendo que, contrariamente à indústria em geral, há uma tendência ao trabalho artesanal da parte da maioria dos cuteleiros nacionais atualmente, para quem o avanço em maquinaria é visto com maus olhos (“a máquina não apresenta a qualidade e esmero que o artesão dedica”).
Na capital mineira, existe um artesão lendário, com têmpera e temperamento de gênio: o mestre Antal Bodolay. Conforme informações do site Cutelaria Artezanal: “O senhor Antal Bodolay, um exemplo da cutelaria artesanal, começou a fabricar facas artesanais aos 15 anos e se tornou um dos maiores e melhores cuteleiros do país, sendo um dos pioneiros nessa arte no Brasil. Ele tinha preferência por Bowies, modelos utilitários para defesa, e era um dos raros a produzir boas espadas. Antal, um imigrante húngaro, desembarcou em Belo Horizonte ainda bebê. Junto com Roberto Gaeta e Padilha, fez parte de uma geração que valorizava e divulgava o melhor em facas artesanais, que ficaram conhecidas como 'faca custom'. Antal começou a forjar suas próprias facas devido a um fato no mínimo muito curioso: ele ganhou uma faca de seu pai, que, nessa época, custava muito caro, e com ela foi cortar um bambu. Contudo, a faca decepcionou, e muito, pois além de não cortar empenou. Com isso, ele decidiu que dali para frente fabricaria suas próprias facas – e assim foi. Dessa forma, correu mais de 50 anos e, neste meio século, saíram de suas mãos verdadeiras obras de arte em facas e espadas que se valorizam a cada dia.”
As peças de cutelaria artesanal, segundo ilustramos com as imagens desta coluna, são joias, peças de colecionador, únicas, preciosas e inusitadas. Na Universidade de Brasília (UnB), considerada a segunda escola de cutelaria do mundo, existe um curso de extensão de cutelaria denominado Curso de Cutelaria Artesanal. A iniciativa se deu após a cidade promover quatro edições do Salão de Cutelaria de Brasília e é fruto da parceria estabelecida entre o Instituto de Artes da UnB e a Sociedade Brasileira dos Cuteleiros (SBC). Outra parceira de sucesso com a SBC é a da Cutelaria Corneta, através da Escola de Cutelaria Artesanal, onde o cuteleiro Ricardo Vilar tem ministrado cursos desde setembro de 2010.
Então, para aqueles que se inflam ao dizer que não gostam de artes, mas, sim, de armas, e para aqueles outros tantos que pretendem desarmar o mundo através das artes, só posso dizer que existem lâminas infinitamente belas, obras que se integram com nobreza ao patrimônio artístico e cultural da humanidade, e que até o mais importante dos medicamentos tem de ser usado conforme uma prescrição de ética e de sabedoria. Assim, não podemos culpar os produtos de nossa cultura por nossa ignorância ou brutalidade, porque somos atores de nossa história, e não vítimas. E todo uso tem a ver com uma escolha!
*Crítico de arte, estudioso de direito, filosofia, sociologia e de psicanálise e professor de judô – [email protected].