Arte descolada
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
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Criado em 13 de Agosto de 2013
Cultura
Quando uso a expressão “descolada ”, procuro dar a esse termo o significado de desapego ao rigor excessivo de certas normas de moral, de direito, de estética, entre outras. A “pessoa descolada” não se restringe a determinados padrões, condutas e valores, não julga em demasia e, por isso, é aceita com mais facilidade e tem a vida, por assim dizer, mais leve.
Ser descolado, então, é se desvincular de determinados padrões e valores para ser o que quiser e quando quiser. Mas não podemos esquecer que todos nós – como tudo o que construímos – somos estruturados sob determinados sistemas de crenças e de valores e que, então, todo o descolamento absoluto só é possível através da alienação ou da loucura.
E a arte? A que valores serve? Não foram poucos os que pretenderam colocá-la a serviço do Estado para demonstrar a supremacia de determinada ideologia, como o fascismo e o stalinismo. A arte a serviço da religião também é situação bem comum. A censura como interdição a ela é conhecida por todos. E a aparência, a sonoridade, assim como os diversos aspectos da arte, mudam, no tempo e no espaço, influenciados, mas não dominados, pelos diversos aparatos que lutam para domesticá-la.
No manifesto por uma “Arte Revolucionária Independente”, escrito em 25 de julho de 1938 pelo organizador da Quarta Internacional Leon Trotsky e pelo fundador do surrealismo, André Breton, e que faz o chamado à construção da Federação Internacional da Arte Revolucionária e Independente (Fiari), há o seguinte trecho:
“Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a toda sujeição, não se deixe impor filiação sob nenhum pretexto. Àqueles que nos pressionam, hoje ou amanhã, para que consintamos que a arte seja submetida a uma disciplina que sustentamos radicalmente incompatível com seus meios, pomos uma recusa inapelável, e nossa deliberada vontade de nos manter no lema: todas as licenças em arte.”
Mas, se é verdade que a arte não pode ser controlada por nenhum regime oficial de censura, verdade igual que não pode se prestar à divulgação da pedofilia, do racismo, da supremacia racial e da apologia à violência gratuita. Tudo isso apenas para mencionar alguns valores contemporâneos mais evidentes, lembrando apenas para ilustrar que, para alguns modelos, a divulgação da imagem de Deus ou de seus profetas pode ser considerada criminosa. Existe, então, uma linha tênue, mais perigosa, que para muitos artistas significou a morte.
Cena do filme “Lolita”, dirigido por Stanley Kubrick, a partir do clássico de literatura homônimo de Vladamir Nabakov/ Fotos: reprodução internet
Em toda cultura, há uma responsabilidade e um risco referente ao fazer artístico, que pode, ou não, tornar uma obra proscrita, indesejável, mas não necessariamente destituída de valor artístico. A obra “’Lolita” é um romance em língua inglesa, de autoria do escritor russo Vladimir Nabokov, publicado pela primeira vez em 1955. O romance é narrado em primeira pessoa pelo protagonista, o professor de poesia francesa Humbert Humbert, que se apaixona por Dolores Haze, sua enteada de 12 anos e a quem apelida de Lolita. O professor, que já conta com certa idade, desde o início se define como um pervertido e aponta como causa um romance traumático em sua juventude.
O romance foi objeto de polêmica acesa, censurado, banido em diversos países, para, depois, ser aceito como clássico da literatura universal e tema de filmes importantes.
Grandes clássicos da pintura retratam guerras, estupros, raptos, sequestros, cenas de escravidão, caçadas atrozes a animais indefesos, desde a antiguidade clássica, e, nem por isso, são considerados abominações. Ao contrário, são retratos de situações políticas, sociais e econômicas verdadeiras, interpretados pela imaginação do artista – com ou sem deleite – mas, de toda forma, eternizados.
Existem ainda obras de arte criadas por orientação de regimes autoritários, como o stalinismo e o fascismo, inspiradas na contraposição a outras que consideravam degeneradas. Feitas para divulgar valores cultuados por esses sistemas de poder, elas foram depois desmoralizadas e pouco a pouco são reavaliadas, no fluxo da história, para serem expostas, justamente, com as outras peças artísticas que combatiam.
Cabe ainda dizer que psicopatas, assassinos e rejeitados sociais dos mais diversos matizes podem produzir obras de arte valiosas, divorciadas de sua índole ou de suas histórias. Cito o exemplo do Cabo Bruno, condenado a cumprir 113 anos de prisão por fazer parte do esquadrão da morte e matar mais de 50 pessoas. Ele pintou na cadeia boas telas que vieram a ser adquiridas, inclusive, por promotores e juízes.
O que me parece é que, uma vez concluída a obra de arte, ela passa a existir artisticamente, independentemente da psicologia, ideologia, moral, direito e religião que lhe deram origem. Trata-se desta vida “descolada”, independe também da índole do próprio autor. Na linha desse entendimento, a crítica da obra de arte, para ser válida, deve se cingir à sua forma e ao seu argumento.
Com essa proposta, evita-se a falácia ad hominem em suas muitas formas, impedindo que a avaliação da obra de arte ataque, por exemplo, o caráter, as companhias, os atos externos à obra, a nacionalidade, a raça, ou a religião do artista, ou que, em outros casos, se baseie apenas na insinuação de que o artista, por ter algo a ganhar com a sua abordagem, é movido apenas pelo interesse. Teremos aí a “arte descolada” para a avaliação da crítica, mas não da censura.
* Estudioso de psicanálise, direito e crítico de arte – [email protected].