Arte e caos: enigmas da criação
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
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Criado em 08 de Julho de 2013
Cultura
Tela abstrata de Wassily Kandinsky, de 1913, exposta na Tretyakov Gallery, em Moscou/ Reprodução da Internet
É fácil apreciar os artistas clássicos, os realistas, a arte figurativa e, mesmo, o surrealismo. Mas, quando estamos diante da arte abstrata, daquilo que não encontra referência em nossa experiência material, ou saber idealizado, ficamos, muitas vezes,
presos na perplexidade.
A racionalidade exige a ilusão da ordem, não obstante o caos esteja em toda parte, na ciência, na filosofia, na arte, no universo e em nossas almas. Na ciência, o fenômeno apelidado “Efeito Borboleta” – analisado pela primeira vez, em 1963, por Edward Lorenz – ficou na cultura popular com a imagem de que o agitar das asas de uma borboleta de um lado do mundo poderia provocar um furacão do outro.
Vejamos nos dias atuais. Manifestações políticas contra o aumento de R$ 0,20 no valor do vale-transporte em São Paulo desencadearam protestos coletivos massivos por todo o Brasil. Enormes, poderosos e multitemáticos, eles refletem a insatisfação da sociedade como um todo com os diversos contextos da vida social, ou seja, o “Efeito Borboleta”, no “outono brasileiro”.
Da grande desorganização do movimento, de sua trajetória caótica, dos abalos que provocou, surgiu a reivindicação do povo brasileiro de controlar as instituições e tomar as rédeas do próprio destino histórico, sob pena de afunilar as energias desagregadas do caos, voltando-as contra toda autoridade, de forma a deslegitimá-la e a substituí-la, com a deposição dos modelos de poder preexistentes. Surge, assim, o caos como pulsão de desagregação e reagregação, momento em que a ordem estabelecida é reduzida ao estado caótico e o caos aponta para a estruturação de uma nova ordem.
Para a mitologia grega, Caos foi o primeiro deus, surgindo como ideia de vazio primordial, a partir do qual tudo foi criado. Ovídio, poeta romano, trouxe pela primeira vez a concepção de caos como desordem mais primitiva e força geradora do universo. Os filhos do Caos, assim como alguns micro-organismos, nasceram de cisões do deus original, e foi com Eros que surgiu o conceito de criação a partir da união de elementos.
Nasce, assim, a ideia de que pulsões distintas podem gerar movimentos organizadores e desorganizadores, e que essas pulsões são, ao mesmo tempo, internas e externas à nossa subjetividade, em que temos o caos dentro e fora de nós. Quando nos expressamos por palavras, organizamos nossas ideias, afastando o caos para que tenhamos facilitado o convívio social. Mas, para parte dos gênios, a manifestação artística é o limite entre a capacidade e a incapacidade de comunicação por vias formais, entre a sanidade e a insanidade.
De Nietzsche – que passou os últimos 11 anos de sua vida sob observação psiquiátrica – temos: “Eu vos digo: é preciso ter um caos dentro de si, para dar à luz uma estrela bailarina”.
Na verdade, é impossível conceber a origem do universo, no nível mitológico, religioso, filosófico ou científico, sem apelar ao conceito de caos. Os conceitos de ordem e caos, tanto quanto o de racionalidade, não têm uma significação normativa.
A ordem não é de per se positiva e o caos não é per se negativo. Parece até que entre os dois existe uma mútua dependência. Klaus Schulten, em seu trabalho “Ordem do caos, razão por acaso”, de 1987, analisou a questão de como o cérebro humano usa, para o direcionamento do comportamento racional, o papel construtivo do acaso.
“O caótico designa, para nós, o emaranhado, o confuso, todas as coisas se precipitando umas sobre as outras em todo sem pé nem cabeça. Caos não significa apenas o não ordenado, mas, ao mesmo tempo, o sem pé nem cabeça na confusão, o emaranhado na precipitação. Caos em significação tardia sempre tem em vista concomitantemente uma espécie de movimento.” Heidegger no livro "Nietzsche" (Forense Universitária, 2007, v. 1, p. 440).
Existem, portanto, aqueles que, organizando todo o caos, o movimento aleatório e, além do significado, que está em toda a parte, produzem a arte racional e planejada tão própria de diversas escolas. Mas existem outros – e como não? – que procuram expressar a imagem do próprio caos, em suas diversas e moventes formas, para que as interpretemos e organizemos, nós mesmos.
Temos medo do Caos, precisamos humanizá-lo, como diria Karl Marx: “rostos pálidos, com olhares perdidos que, tal como fantasmas, retornamos à noite para casa. É pelo trabalho que o ser humano se confronta com as forças da natureza e, ao mesmo tempo, que a modifica, transforma a si mesmo, humaniza-se”. Humanizamos o caos porque o tememos e o transformamos pela mesma razão.
Jim Morrison, vocalista da banda de rock The Doors/ Foto: Reprodução da Internet
Jim Morrison – vocalista da banda de rock The Doors – era filho do almirante George Stephen Morrison e de Clara Clark Morrison, ambos funcionários da marinha americana. Seus pais eram conservadores e rigorosos. O grande talento do rock and roll moderno dizia: “Tudo o que é desordem, revolta e caos me interessa; e particularmente as atividades que parecem não ter nenhum sentido. Talvez seja o caminho para a liberdade. A rebelião externa é o único modo de realizar a libertação interior”. Morreu em 3 de julho de 1971, dentro de uma banheira, aos 27 anos de idade. Em sua lápide está escrito em grego: “kata ton daimona Eaytoy”, que em português significa “queime seu demônio interior”.
Enfim, esta coluna, meio caótica, eu sei, vem para libertar os amigos – que vêm a seguindo com a intenção de melhor interpretar a arte – da ilusão de que apenas a ordem pode gerar a beleza, de que apenas a ordem é bonita e de que apenas em harmonia podemos viver em segurança as maravilhas da vida, como diria Charles Chaplin: “Não devemos ter medo dos confrontos... até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas”.
* Estudioso de psicanálise, direito e crítico de arte – domingos_nogueira_consultoria@ yahoo.com.br.