As pessoas de Fernando
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Criado em 19 de Dezembro de 2012
Cultura
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
Vivemos um momento encantador no mundo da poesia. Críticos discordam, mas é a pura verdade. Todos os dias, recebo pela internet poemas de amigos virtuais, e pessoas me abordam falando de dons poéticos de filhos, irmãos e conhecidos. O problema da crítica é que a poesia estaria sendo vulgarizada. Mas não é possível pensar assim.
Ler poesia é uma delicadeza, por uma razão: é que escrever poesia é uma manifestação de sentimento, quase uma súplica para que o poeta seja sentido, e não existe nada mais sensível e delicado do que compartilhar sentimentos. Se milhares de pessoas compartilham sentimentos pela internet, dispensando a formalidade do texto expresso, maravilha, o mundo está se tornando melhor.
É preciso, no entanto, lembrar que as poesias não são apenas "balas açucaradas", porque os sentimentos também não são, e as leituras excelentes das obras de Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e Edgar Allan Poe, por exemplo, podem ajudar a formar esse conceito, o que remete à questão crucial, a importância da "capacidade sedutora" da poesia, da originalidade e da adequação da técnica do poeta aos fins da conquista, não só da atração da atenção do outro, mas do lugar em sua memória.
O que acontece é que, muito embora existam milhares e milhares de poetas, com uma plêiade ainda maior de leitores sensíveis e atentos para a história da literatura, para a eternidade da memória dos povos, ficará, necessariamente, um número menor, e, nesse garimpo de mais de mil anos, existe um personagem imortal chamado Fernando Pessoa.
Filósofo e poeta português, Fernando Pessoa dividiu-se para escrever seus poemas, em inúmeras pessoas, cada qual com sua própria personalidade e seu estilo poético. E, dividindo-se, multiplicou-se para encher o mundo de poesia. O crítico literário Harold Bloom considerou sua obra um "legado da língua portuguesa ao mundo".
A figura que representa um único autor se apresentando com diversos nomes se chama heterônimo. O autor se chamava de "drama em gente", e seus diversos personagens ainda hoje são objeto de debate literário. O poeta e crítico brasileiro Frederico Barbosa declara que Fernando Pessoa foi "o enigma em pessoa". O poeta mexicano Octavio Paz, laureado com o Nobel de Literatura, diz que "os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia" e, no caso de Fernando Pessoa, "nada na sua vida é surpreendente — nada, exceto os seus poemas". Em “The Western Canon”, Harold Bloom incluiu-o entre os cânones ocidentais, no capítulo “Borges, Neruda e Pessoa: o Whitman Hispano-Português”.
Através dos heterônimos, Pessoa conduziu uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade. Este último fator possui grande notabilidade na famosa misteriosidade do poeta.
"Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?"[1] Fernando Pessoa queria, então, ser sentido e, para isso,
usou todas as vozes que pode criar, para dizer aos leitores, e até para si mesmo, da necessidade de ser sentido, de ter sentido... e diz em sua autopsicografia:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escrevem,
Na dor lida, sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E, assim, nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Diversos estudiosos de Pessoa procuraram enumerar seus pseudônimos, heterônimos, semi-heterônimos, personagens fictícias e poetas mediúnicos. Em 1966, a portuguesa Teresa Rita Lopes fez um primeiro levantamento, com 18 nomes. Antonio Pina Coelho, também português, elevou em seguida a relação para 21. A mesma Teresa Rita Lopes apresentou um levantamento mais detalhado em 1990, chegando a 72 nomes. [2] Em 2009, o holandês Michaël Stoker chegou a 83 heterônimos. Mais recentemente, o brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, utilizando critério mais amplo, apresentou uma lista com 127 nomes.[3]
Então, jovens poetas, que fazem todo o sentido para mim, comprem os livros de Fernando Pessoa, de todos os Fernandos, e os saboreiem, com sentimento, com vagar. Deixem que as palavras do(s) poeta(s) se misturem aos seus sentimentos, curtam, compartilhem... e todos nos sentiremos um pouco mais juntos.
[1] Pessoa, Fernando. Livro do Desassossego. Coleção: Obras de Fernando
Pessoa. Assírio & Alvim, 2006. ISBN 972-37-0476-5.
[2] Heteronímia. Infopedia.pt. Página visitada em 6 de junho de 2012.
[3] José Paulo Cavalcanti Filho. Fernando Pessoa, uma quase autobiografia
(em português). 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 239-240.
*Estudioso de psicanálise e crítico de arte e cultura [email protected]