A convite de membros da Sociedade São Vicente de Paulo, a reportagem da revista Mais passou cinco dias na cidade de São Francisco, no Norte de Minas, onde, apesar de ter se deparado com a seca e a fome, encontrou também muita fé, força de vontade e solidariedade.
Quando fui convidada a participar de uma missão de solidariedade no Norte de Minas Gerais, nunca poderia imaginar que encontraria tanta alegria em meio a tantas dificuldades. Todos os anos, a Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP) realiza missões em diferentes cidades para levar aos que precisam dois tipos de alimento: o do corpo e o da alma. Durante o ano, são arrecadados alimentos, roupas, calçados e artigos de higiene, que são doados durante as missões.
Nosso grupo era formado por cerca de 50 pessoas. Saímos de Contagem, no dia 14 de novembro, e chegamos ao nosso destino, na cidade de São Francisco (há 530 km de Belo Horizonte), na manhã do dia 15. Nesse mesmo dia, já começamos a visitar as comunidades nos arredores da cidade – a maioria rural. As casas visitadas já haviam sido cadastradas pelos vicentinos locais.
Pedíamos licença, entrávamos, conversávamos com as famílias e fazíamos uma oração, todos juntos. No final, para as famílias
que necessitavam, que eram praticamente todas, entregávamos uma senha que deveria ser trocada por uma cesta básica e informávamos sobre a distribuição de roupas e colchões. Cada grupo ou dupla, dependendo da divisão, todos os dias, visitava
dezenas de casas cadastradas. Nas comunidades rurais, apesar do sol de trincar o chão e de não haver sinal de chuva, o arado não parava e as sementes continuavam a ser plantadas. Mas, enquanto os pés ficavam firmes na terra, os olhos, vez ou outra, voltavam-se para cima, com a eterna dúvida se a água cairia ou não. E ela finalmente veio.
No segundo dia de visita, depois de andarmos quilômetros de uma casa a outra, a água cristalina que todos tanto aguardavam
caiu do céu, bem na hora da missa realizada na comunidade e da distribuição das cestas. E alguém reclamou da lama? Claro que não. Não havia espaço para tristeza ou preocupações pequenas. Estava chovendo! Em praticamente todas as casas que visitei, não pude deixar de me perguntar se aquelas pessoas eram felizes. Tudo era tão diferente do que eu estava acostumada.
A vida parecia passar mais devagar. Quais seriam os planos daquelas crianças e jovens? O que o futuro reservará a elas? Essas perguntas, acredito, ninguém será capaz de responder.
Desigualdades
Em São Francisco também pude ver de perto como o mundo é desigual. Mesmo ali, em uma pequena cidade, as desigualdades eram tantas que ficava impossível não se indignar. Um dia, passando por uma praça da cidade, deparamos om
dois ou três jovens lavando uma caminhonete de luxo com a água da praça. Entre uma conversa e outra, litros d’água iam embora pela mangueira.
Enquanto algumas regiões sofrem com a seca, outras têm água com abundância. As comunidades ribeirinhas, que vivem às margens do Velho Chico, têm de migrar sempre que a água sobe. As casas de barro batido se vão todos os anos, e todos os anos são reconstruídas.
Nesse cenário, encontramos Izabel Naves Miranda, 33, mãe de cinco filhos, um menino e quatro meninas. A alegria e a perseverança em pessoa. Foi ela quem nos contou que em períodos de seca é possível atravessar o São Francisco a pé, de uma margem a outra. Porém, durante o período das águas, o rio sobe tanto que os moradores migram e acampam nas fazendas que ficam em terrenos em nível mais alto, mesmo a contragosto da maioria dos fazendeiros. Quando a água retorna para o rio, os moradores também voltam para suas casas, ou para o que restou delas, e começam a reconstruir tudo.
Durante nossa visita, os filhos de Izabel estavam na escola. Ela faz questão que todos estudem e acompanha de perto a vida escolar deles. Tem esperança de que a cidade cresça e ganhe mais oportunidades de trabalho, para que nenhum dos filhos precise sair de lá em busca do seu ganha-pão. “Quero que meus filhos estudem, mas não gostaria de vê-los indo embora. Incentivo muito eles porque não tive oportunidade de frequentar a escola. A maioria das crianças daqui estuda só até a terceira série”, conta. Izabel já tentou a sorte e foi morar em Belo Horizonte, na casa das tias que foram para lá há muitos anos. Mas a saudade de sua terra falou mais alto e ela voltou. “Eu amo muito esse lugar. Para mim, seria ideal se houvesse emprego e estudo aqui”, diz.
Galinha Tonta
Um dos personagens mais curiosos dessa missão foi Edvalson Bispo dos Santos, o Galinha Tonta, como é conhecido em toda a região. Quando criança, ele saía de casa em casa pedindo um prato de comida – era assim que conseguia se alimentar. Uma vez, a empregada de uma casa lhe deu comida, mas sua patroa não teve a mesma generosidade. Ao chegar e deparar com um menino pobre comendo na cozinha de sua casa, a mulher não hesitou em humilhá-lo. “Ela perguntou o que eu estava fazendo na casa dela e disse que eu deveria estar comendo com os cachorros. Eu tinha 7 anos”, lembra.
Ele voltou triste para casa, perguntando por que aquilo acontecera com ele. Naquele dia, ao dormir chorando, sonhou com um menino japonês, Toshio, que escrevia na areia de uma praia a frase “Deus é amor”. Mais duas crianças apareceram no sonho e se apresentaram, um era inglês, Paul, e o outro alemão, Hans. Durante 15 anos ele sonhou com as três crianças que lhe ensinaram suas respectivas línguas natais. Ele aprendeu a escrever nessas línguas antes mesmo de aprender a ler e a escrever em português. Quando começou a falar em um idioma diferente, todos acharam que ele estava ficando louco. Daí o apelido.
Hoje, Galinha Tonta dá aulas gratuitas de idiomas para as crianças da comunidade, no espaço Fala Menino. Sem ajuda do governo, ele e o espaço vivem de doações, que são poucas, e dos doces que ele mesmo faz e vende na região. Para Galinha Tonta, aquelas três crianças eram muito mais que um sonho, eram seus melhores amigos.
Exemplos para a vida toda
As Marias por lá são muitas. E as histórias que elas têm para contar também. Muitas tiveram de deixar os filhos partirem para Brasília em busca de emprego e de uma vida melhor. Elas trabalham fora, em casa, cuidam dos filhos, dos netos, da plantação, desdobram-se para fazer a comida render e rezam para a chuva cair. É o que aconteceu com os filhos de seu Josino, 67. Viúvo, ele se orgulha da fotografia de um dos filhos com farda do Exército, exposta ao lado da pequena e antiga televisão.
A filha mais velha também foi para Brasília trabalhar.
Pergunto-me se o sertão tem esse poder de deixar as pessoas mais fortes e de torná-las mais humanas, porque o que mais vi em São Francisco foi isto: as pessoas são fortes, sem ser rígidas. São realistas, responsáveis, mas não deixam de sonhar e de ter esperança. São pessoas que poderiam reclamar da vida sem que ninguém pudesse lhes tirar a razão, mas não o fazem. Pelo contrário. Elas tentam, ao máximo, perceber o que há de bom nas coisas, até nas adversidades, e se agarram a isso de uma forma incrível. Entregam-se à esperança com tamanha destreza que não sobra espaço para a tristeza. A alegria toma conta de tudo.
E era com essa alegria que elas nos recebiam. Não precisávamos pedir para entrar, porque éramos convidados. Mãos cumprimentavam e agradeciam ao mesmo tempo. Mas também nós é que agradecíamos pela receptividade, por tudo. Era impossível não sentir aquela energia, uma força que vinha não sei de onde, e que nos enchia de vontade para continuarmos. O trabalho não podia parar. Apesar das distâncias quilométricas entre um vizinho e outro, os vicentinos não desanimavam. A mesma alegria que nos era passada em uma casa, aproveitávamos no percurso até a outra. E assim foi em todos dias. O curioso é que, dos cinco dias que ficamos na cidade, em pelo menos três a chuva caiu, depois de meses de estiagem.
No último dia de visitas me emocionei muito. Nunca havia sentido nada parecido. A força daquelas pessoas, daquele lugar, mexeu comigo. Voltamos para casa e a seca voltou para o sertão, mas algo mudou. Nós mudamos São Francisco? Talvez. Mas, se perguntarem se São Francisco me mudou, a resposta é óbvia: para sempre. Saímos do sertão, mas o sertão continuou conosco.
Sobre a SSVP
Segundo a SSVP Brasil, a instituição foi fundada por Frederico Ozanam, que nasceu em 1813. Aos 20 anos, em
Paris, com o apoio de amigos, ele deu início a uma obra que ajuda milhões de famílias há mais de 170 anos: a Sociedade de São Vicente de Paulo. Por ser considerado o patrono de todas as obras de caridade e por ter trilhado um caminho de dedicação radical aos pobres e às missões populares, São Vicente de Paulo foi a inspiração para a denominação da SSVP. Atualmente, a sociedade está presente em 143 países e tem mais de 700 mil membros espalhados pelo mundo. No Brasil, a instituição nasceu em 1872, com a Conferência São José, no Rio de Janeiro. Hoje, o Brasil é o maior país vicentino do planeta.