EM 1997, OS PARCEIROS (na música e na vida) Rita Lee e Roberto de Carvalho imortalizaram, sutilmente, na canção “Obrigado não” (Universal Music), a defesa pelo direito ao aborto e ao casamento gay, pela legalização da maconha e pelo fim da obrigatoriedade do voto. Hoje, 18 anos depois do lançamento da música, praticamente todos esses temas continuam sendo debatidos, sem sinais de consenso, pela sociedade brasileira. E, entre os grupos que militam em prol de causas como as endossadas nos acordes de Rita e Carvalho, está o da Marcha das Vadias, movimento sustentado em vários cantos do mundo, que, essencialmente, luta contra o machismo e os atos de violência contra a mulher – e que, neste ano, teve seus representantes brasileiros levantando a bandeira da legalização do aborto e da autonomia da mulher sobre o próprio corpo.
O já tradicional encontro pela marcha, que ocorreu no último dia 20, em Belo Horizonte, levou centenas de pessoas à região centro-sul da capital mineira. Com cartazes e faixas com dizeres como “meu útero é laico”; “as ricas abortam, as pobres morrem”; “essa hipocrisia dá hemorragia – 83% das mulheres que abortam são cristãs” e roupas consideradas provocantes, apoiadores e integrantes do movimento se reuniram na Praça da Liberdade e, de lá, caminharam até a rua Guaicurus, zona boêmia de BH. “Somos mulheres brancas, pardas e negras; hetero, transexuais e lésbicas; casadas e solteiras; mães, prostitutas, estudantes... Reivindicamos o uso livre de nosso próprio corpo e o direito de vivenciar e manifestar nossa sexualidade com toda a diversidade que isso representa, sem as violências presentes em uma sociedade patriarcal”, resume a psicóloga Letícia Gonçalves, 27, uma das organizadoras da marcha.
ECOOU PELO MUNDO
A Marcha das Vadias surgiu em 2011, depois do registro de diversos casos de estupro na Universidade de Toronto, no Canadá. Na ocasião, o policial Michael Sanguinetti declarou que, para não serem vítimas de ataques, as mulheres deviam evitar se vestir como vadias. O “argumento antiestupro” teve repercussão mundial, e a consequência imediata foi um protesto que reuniu mais de 3.000 pessoas nas ruas de Toronto, denominado Slut Walk (marcha das vadias, em português). Desde aquele ano, não apenas o Canadá, mas Estados Unidos, Holanda, Austrália, Portugal, Argentina, Brasil e muitos outros países abraçaram a luta contra o machismo e a violência.
Um estudo realizado em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 56 países e divulgado pela revista The Lancet, em 2014, revelou que uma em cada 14 mulheres já foi, pelo menos uma vez na vida, vítima de abuso sexual. A Organização das Nações Unidas (ONU) apontou dados ainda mais desanimadores: cerca de 70% das mulheres em todo o mundo sofrem algum tipo de violência ao longo da vida; e uma a cada cinco mulheres será vítima de estupro ou de tentativa desse crime. De acordo com a ONU, “a violência contra as mulheres não está confinada a uma cultura, a uma região ou a um país específicos, nem a grupos de mulheres. As raízes da violência contra as mulheres decorrem da discriminação persistente contra elas”.
As integrantes da Marcha das Vadias fazem coro à constatação das Nações Unidas. E, para elas, as estatísticas alarmantes estão ligadas a uma cultura que impõe à mulher a condição de indivíduo inferior. “O estupro foi o ponto central do surgimento da marcha no mundo. Então, é preciso questionar firmemente a banalização do uso público do corpo da mulher, revelado, muitas vezes, na forma de cantadas grosseiras, e a atribuição de culpa às vítimas do ato. Um vestido curto ou um corpo bonito não são convites ao assédio e ao estupro. Em vez de apurarmos a roupa que a mulher veste, vamos questionar a naturalidade com a qual a sociedade convive com as violências de gênero”, argumenta Letícia.
Com ideais feministas, a marcha busca, ano após ano, consolidar-se como espaço laico e apartidário, de debates e denúncias, no qual as pessoas possam se expressar com liberdade e criatividade.
DE COIMBRA PARA BH
Há cerca de oito meses, a portuguesa Cass Teixeira, de 33 anos, trocou Coimbra, em Portugal, por Belo Horizonte. Fundadora da Marcha das Vadias no país europeu, em 2011, a autônoma continua firmemente engajada nos propósitos feministas. “Quando surgiu o Slut Walk, quisemos demonstrar nossa solidariedade às mulheres canadenses. Antes de me mudar, já tinha contato com algumas pessoas que constroem a marcha aqui. Então, foi bem fácil me integrar”, conta.
Reconhecendo que o movimento é propulsor de polêmicas e alvo de divergências, Cass acredita, no entanto, que o incômodo provocado tem papel fundamental. “A marcha tem uma importância enorme, principalmente pelo seu caráter global e por ser uma ferramenta mais ousada de reivindicação. Quando saímos às ruas exigindo autonomia sobre nossos corpos, atribuímos mais poder às nossas palavras, ao mesmo tempo em que provocamos incômodo em muitas pessoas. Mas esse desconforto culmina na reflexão”.
“A curiosidade e o incômodo incitados pelo caráter autêntico e ousado da marcha acabam provocando a população em relação aos temas tratados. Além disso, a ampla cobertura midiática que ela atrai traz à tona pautas que muitas vezes estão ‘invisíveis’ ou ‘adormecidas’, como o aborto e a prostituição”, acrescenta a estudante Júlia Rodrigues, 21. Ela, que é negra, chama a atenção para o que denomina de “problematização” do movimento. “É preciso elucidar quem a marcha representa, pois não existe um modelo universal de mulher, e as opressões nos atingem de formas e em níveis distintos”, argumenta. Foi motivada por questões como essa que a estudante começou, neste ano, a participar das reuniões do movimento. “Acredito que a marcha tenha viabilizado para muitas a aproximação com ideias feministas, mas penso que é necessária uma profunda reflexão, nos próximos anos, sobre quem a marcha representa, a fim de que se formule um plano crítico, sustentável e estratégico”, defende Júlia Rodrigues.
APOIO X REPROVAÇÃO
O biólogo André Martins, de 25 anos, sempre acompanhou o evento pelos noticiários e pelas redes sociais. Neste ano, porém, ele tomou uma decisão: vai fazer companhia às amigas na edição de 2016. “Não é preciso ser mulher para entender e apoiar os objetivos do movimento. É inadmissível que muitas ainda sejam vítimas de insultos, humilhações, assédios e violências. A autonomia sobre seus corpos e o poder de escolha, no caso da maternidade, são lutas totalmente legítimas, que devem ser apoiadas por todos que as defendem, independentemente do sexo. Precisamos começar a olhar com mais cuidado para a realidade e desvincular certos fatos do fanatismo religioso”.
Uma senhora de 62 anos, que pediu para não ter seu nome divulgado, discorda frontalmente. Moradora da região central de BH, ela assiste, ano após ano, com muita reprovação, à passeata feminista. “Acho que é um grupo radical que pensa que pode ter uma vida promíscua, de forma irresponsável, sem se preocupar com consequências como a gravidez. Isso fora a obscenidade de seus atos, pois muitas adoram exibir seus corpos desnudos perto de crianças e de idosos. Não é assim que essas mulheres vão conseguir o que desejam”.
Aprovações ou reprovações não vão, pelo jeito, diminuir a motivação das feministas. “Quando uma mulher, tal como um homem, puder tirar a blusa em um dia de calor e não for agredida física ou verbalmente por isso; quando uma mulher puder andar sozinha na rua sem correr o risco de ser violentada ou morta; quando uma mulher não for socialmente agredida, abusada e humilhada em função de sua classe social ou cor da pele, aí a Marcha das Vadias não será mais necessária. Esperamos que isso ocorra logo, mas, até esse dia chegar, a luta segue por todo o mundo”, conclui Cass.