Desastre em Mariana em livro

Jornalista Cristina Serra lança publicação sobre o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana; maior tragédia ambiental do país ocorreu em novembro de 2015 e deixou 19 mortos, além de graves prejuízos à sociedade

Criado em 30 de Abril de 2019 Entrevista
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Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Cristina Serra tem 32 anos de profissão. Desses, 26 foram dedicados à Rede Globo, onde já atuou nas praças do Rio de Janeiro e de Brasília, além de ter sido correspondente em Nova York e repórter do programa “Fantástico”. Cristina também já pertenceu às equipes do “Jornal do Brasil” e da revista “Veja”. Uma das grandes coberturas que realizou em sua carreira foi a da tragédia que ocorreu em Mariana, na região Central do Estado, em 2015. O contato com a comunidade e a repercussão grandiosa do caso a levaram a escrever o livro “Tragédia em Mariana – A História do Maior Desastre Ambiental do Brasil”. A jornalista tem rodado o país para palestrar sobre o que apurou do desastre e falar de seu produto. Cristina esteve em BH no dia 22 de fevereiro, quase um mês após outra tragédia com barragens, desta vez em Brumadinho, na região metropolitana da capital, para fazer um segundo lançamento da publicação – o primeiro ocorreu em novembro. Nesta entrevista, Cristina conta como foi a produção do livro, que ela considera uma grande reportagem, fala sobre o que mais a marcou durante as apurações e comenta o caso de Brumadinho.

Fale um pouco sobre a origem do livro.

Eu cobri o caso de Mariana na época em que era repórter do “Fantástico”, da Rede Globo. Fiquei muito impressionada porque, quando fui para lá, eu, sinceramente, não sabia nem que existia barragem de rejeito de mineração. Para mim, quando se falava em barragem, era de usina hidrelétrica, para o armazenamento de água. Quando me dei conta da situação, com aquela lama horrorosa, foi uma coisa muito chocante. Eu passei o Natal de 2015 em Mariana, e me impressionou muito a situação daquelas pessoas. Elas ainda estavam de luto, mas, ao mesmo tempo, eu via nelas uma coragem muito grande para enfrentar tudo aquilo, muita força e solidariedade, e isso me impressionou. O drama humano me comoveu demais, e resolvi fazer o livro. Claro que as matérias que eu tinha feito até então me ajudaram a ter o contexto. Mas, para o livro, decidi contar a história das 19 pessoas que morreram. Eu ficava me perguntando: quem são essas 19 pessoas? Quero saber o nome e a idade delas, onde elas moravam, preciso conhecer as famílias, as histórias de vida e o que elas queriam para o futuro. Também queria falar dos sobreviventes, das pessoas que viveram aquela tarde inesquecível naquele mar de lama. Um drama que fica para sempre na memória de quem passou. Comecei a escrever o livro indo atrás dessas pessoas.

Mas o livro também aborda outros aspectos da tragédia?

O que me motivou foi o drama humano, mas, ao mesmo tempo, eu sabia que havia uma investigação que estava apurando as responsabilidades da tragédia. Não foi uma tragédia natural. Era algo que precisava de uma explicação objetiva: quem tomou certas decisões que implicaram uma situação de risco? Eram coisas que estavam sendo levantadas e me deixaram curiosa também. Para fazer o livro, percorri dois caminhos: ao mesmo tempo em que eu levantava muitos documentos sobre a investigação e acompanhava o trabalho que o Ministério Público Federal fez – foi uma ação exaustiva, muito detalhada e, no caso de Fundão, exemplar –, fui atrás dessas pessoas para conhecer essas histórias. O livro começa contando como cheguei a Mariana, as primeiras matérias que fiz, e vou entrelaçando isso com as histórias das pessoas e com o avanço da investigação. O livro tem uma abordagem muito importante que é o aspecto da memória das pessoas e de minha experiência como repórter que vai conduzindo essa narrativa. Além disso, mostro as consequências do desastre, que são as perdas dos patrimônios, físico e histórico, a poluição do rio Doce. Fiz duas vezes o caminho da lama da barragem até a foz, no Espírito Santo. Na primeira vez, fiz como repórter de TV, e a segunda, antes de fechar o livro, pois queria ver como estava dois anos depois. O livro é uma grande reportagem, na verdade.

O que mais te marcou?

O drama humano. É uma coisa avassaladora. Primeiramente, porque as pessoas jamais vão se esquecer. Todas ficaram bastante marcadas; algumas, muito traumatizadas. A vida delas foi virada do avesso. Em segundo lugar estão as perdas. As viúvas que perderam os maridos, os filhos que perderam os pais, os pais que perderam filhos. E, além das perdas humanas, você tem as materiais. Muitas famílias viviam nesses povoados havia várias gerações. Elas têm uma ligação com a terra muito profunda, enraizada. Ser arrancado abruptamente daquele lugar tirou todas as referências de vida delas. Isso provoca impactos emocionais muito grandes. E, por fim, as perdas patrimoniais: móveis, eletrodomésticos, roupas, tudo que todos construíram. É muito difícil superar todas essas perdas. Mas o curioso é que, ao mesmo tempo em que via as pessoas lidando com essas perdas, eu sentia nelas uma força muito grande, uma coragem, uma sensação de que elas pensavam: “A vida segue em frente, e a gente vai seguir de cabeça erguida e reivindicando o que tem que reivindicar”. Percebia neles uma vontade de não quererem ficar presos ao passado para o resto da vida. O sentimento de reconstrução é muito grande para essas pessoas. Eu me perguntava: como essas pessoas tinham tanta força mesmo tendo perdido tanto? Eu acho isto tão admirável, essa capacidade de dar a volta por cima. Foi uma coisa que me impressionou demais. De certa forma, o livro é uma homenagem a essas pessoas que foram atingidas de uma forma tão brutal e que estão aí, até hoje, esperando uma resposta. As casas não foram construídas, a maioria das indenizações não foi paga. É uma situação muito difícil, porque já faz mais de três anos. Em relação aos três principais povoados devastados – Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira –, a promessa é que eles sejam entregues em 2020, ou seja, cinco anos depois do desastre. Estamos falando de cerca de 400 casas. Não é tanto assim para três grandes mineradoras entregarem (a Samarco tem como acionistas a Vale e a BHP Billiton). Essas pessoas precisam voltar a viver em suas comunidades, retomar suas relações com a vizinhança. Elas viviam nesses povoados e não fechavam a janela nem a porta. Onde estão morando hoje, em Mariana, elas não fazem isso. É uma cidade de porte médio que tem seus perigos. Essas pessoas viviam num arraial, num lugarejo simples e sentem muita falta disso.

Nesse processo de construção, de coleta das informações, como você enxerga o suporte  das empresas aos atingidos? Acha que falhou?

Acho que falhou e está falhando ainda. Na verdade, as empresas constituíram a Fundação Renova para fazerem um trabalho de assistência aos atingidos e de recuperação dos danos ambientais. É um trabalho gigantesco. A lama percorreu 660 km; é mais do que a distância entre Rio de Janeiro e São Paulo. Imagina fazer obras no leito de um rio, um dos principais do Estado. Ninguém tem dúvida de que a tarefa é gigantesca, é complexa. Até hoje não se sabe se deixa a lama no fundo do rio ou se a tira. A Renova diz que não deve ser retirada porque, se for, vai provocar outro dano ambiental. E vai levar para onde essa lama? Enfim, tem uma série de questões complexas. Mas o fato é: a fundação não resolve. As casas não foram construídas, nem entregues; a lama está no fundo do rio, a maior parte das indenizações não foi paga. Minha crítica principal é que o processo decisório é extremamente lento e complexo. Outra coisa muito importante: a fundação não tem legitimidade perante os atingidos. Você conversa com qualquer atingido, e ele não reconhece a Renova como o órgão que deveria resolver todas as consequências do desastre. Tenho minhas dúvidas sobre se criar uma fundação foi a melhor solução para o desastre do rio Doce.

Você tem 32 anos de profissão. O rompimento em Mariana foi uma das piores tragédias que você cobriu?

Eu cobri casos pesados: a tragédia da região serrana no Rio de Janeiro, que provocou milhares de mortos; o terremoto no Haiti, uma coisa pavorosa, com mais de 200 mil mortos. Mas a diferença é que essas foram catástrofes naturais. O desastre de Mariana teve a mão humana. Foram funcionários e gerentes da empresa que sabiam do risco e não tomaram nenhuma decisão para evitar problemas maiores. Aliás, a investigação do MPF mostrou que o diretor e o presidente sabiam dos riscos da barragem e não tomaram as medidas que deveriam ter tomado. A Polícia Federal recolheu, na época da investigação, as conversas entre o diretor-presidente e o diretor-geral de operações da Samarco. E eles comentam os riscos da estrutura de Fundão. Mas esperamos que a Justiça se encarregue de analisar, estudar, julgar e sentenciar.

Como foi sua relação com as vítimas ou com os parentes dos mortos cujas histórias são contadas no livro?

Eu me aproximei muito dos personagens, como, por exemplo, do Romeu, que estava na barragem na hora em que ela se rompeu e sobreviveu – a história dele é miraculosa; da Paula, que pegou a moto e saiu avisando os moradores de Bento Rodrigues que a barragem havia se rompido. Encontrei-me com eles pessoalmente várias vezes e os tenho no Facebook, no WhatsApp. Mantive contato com eles durante a produção do livro, pois explorei mais as histórias. Queria contar minúcias. Eram conversas muito difíceis, pois mexiam com a emoção deles. Aí, eu parava, dava um tempo e remarcava outra entrevista. Perdi a conta de quantas vezes fui a Mariana. Sou muito grata às pessoas por terem confiado em mim, por terem contado coisas de sua vida íntima, de sua família, de seu ente querido. Por isso, digo que esse livro foi escrito a muitas mãos. O livro ficou muito rico nesse aspecto humano. Acho que, no fundo, as pessoas esperavam que alguém as procurasse para que contassem suas histórias. Elas precisavam ser ouvidas. Dos 19 que morreram, sete famílias não quiseram falar por alguma razão, e eu respeitei. As outras 12 que concordaram abriram completamente o coração. Apesar de não ter ouvido esses sete, o livro cumpre a missão de dar voz às pessoas.   

Do ponto de vista emocional, como foi para você, enquanto jornalista, lidar com isso?

Às vezes, você vai cobrir tragédias tenebrosas e tem que estar com o couro duro porque precisa fechar a matéria. Ainda mais em televisão. Não se pode sentar na calçada e chorar; tem que estar com a cara boa. Mas, claro, em várias entrevistas, eu ficava muito emocionada e chorava junto com as pessoas. A do Romeu foi uma das primeiras que eu fiz. Comecei a chorar na frente dele, e ele estava sereno, controlado; ele que me consolou. Às vezes, eu saía da entrevista e ficava muito mexida, sobretudo quando escrevia algumas histórias. Por isso, dava uma pausa entre uma e outra, pois precisava respirar.

Profissionalmente, o que esse livro significa para você?

Um aprendizado. Eu não tenho dificuldade para escrever porque comecei a carreira no jornal impresso. E foi um aprendizado incrível voltar a escrever textos, porque, na TV, você escreve pouco. A imagem ajuda muito. Esse livro foi um reencontro com duas coisas que eu amo na vida: reportagem e texto. Claro que o editor me deu observações que foram maravilhosas. Mas a estrutura do livro saiu de minha cabeça. É uma realização profissional e pessoal.

Minas Gerais enfrentou o mesmo pesadelo três anos depois, no dia 25 de janeiro, após o rompimento da barragem da Vale na mina de Córrego do Feijão. Para você, o setor não aprendeu nada?

Nada. Sobretudo as empresas e, em segundo lugar, o poder público. A Vale é uma das acionistas da Samarco e depositava lama na barragem de Fundão. Ela passou por toda a experiência de Mariana, sabe de tudo que a investigação mostrou. E o atual presidente da mineradora (Fabio Schvartsman, no cargo desde maio de 2017) assumiu inclusive com o lema “Mariana nunca mais”. Pressupunha-se que ele seria extremamente rigoroso com a gerência de risco das estruturas. Ocorre o seguinte: barragem de rejeito, mesmo a que está em processo de desativação, como a que se rompeu em Brumadinho, é uma estrutura de risco, pelo tipo de material que ela armazena, o qual contém agua, e pelo volume, que é uma quantidade absurda. Mesmo que elas sejam operadas e monitoradas com todas as normas de segurança, são consideradas estruturas de risco. Todos os engenheiros dizem isso. Então, quem opera e é dono de uma barragem de mineração tem que ser obcecado com segurança. A barragem de Brumadinho estava em cima e, logo abaixo, o refeitório e o escritório, onde ficavam muitos trabalhadores. Essa situação jamais poderia ter acontecido. É bem verdade que a Vale comprou aquele complexo minerário, e as instalações já estavam ali. Mas o que o presidente da companhia deveria ter feito? Perceber o quanto aquilo era absurdo, demolir e passar o refeitório e a área dos trabalhadores para um local seguro. Se tivessem feito isso, o custo humano teria sido menor porque a maioria dos mortos é de trabalhadores que estavam na empresa. Então, a Vale especificamente não aprendeu nada com o episódio de Mariana porque ela foi incapaz de detectar situações de grave risco. E as autoridades também não aprenderam porque, novamente, quando acontece um desastre desse, a gente se pergunta: mas a fiscalização não viu isso? Se foi lá e identificou o problema, qual foi a providência que pediu? Essa situação não é normal, não podia ter acontecido. As investigações já estão mostrando, e falo com base no que tenho lido na imprensa, que os gerentes da área de geotecnia que cuidam da barragem sabiam de problemas na estrutura e, mesmo assim, não tomaram as providências, como alertar as autoridades, remover as pessoas dali, entre tantas outras.

Você pretende fazer um livro sobre Brumadinho?

Não sei se eu vou fazer um livro, mas creio que alguém tem que fazer. Um desastre desse não pode passar em branco e não cabe só nas páginas dos jornais. Cedo ou tarde, a imprensa esquece, porque surgem outras tragédias, outros assuntos. Acho que escrever um livro ajuda a evitar que esses casos caiam no esquecimento. Eu queria muito isso no caso de Mariana. E, em relação a Brumadinho, se isso for feito, vai ajudar a manter a memória das pessoas que morreram, porque o principal é a perda humana.




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