Descompasso Noturno

Insônia afeta grande parte da população brasileira e leva a um consumo exagerado de remédios para dormir. Mais de 50 milhões de caixas de medicamentos foram vendidas no país em 2018.

Criado em 19 de Dezembro de 2019 Saúde e Vida
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Iêva Tatiana

A cuidadora de idosos e vigilante Andréa Cláudia Medina Mater, de 49 anos, sonha acordada com o dia em que vai conseguir dormir. É que há mais de duas décadas ela enfrenta o mesmo pesadelo: a insônia. Medicina ortomolecular, acupuntura, psiquiatria, receitas caseiras, uma porção de supostas dicas infalíveis e até simpatias já foram experimentadas por ela, mas nada surtiu o efeito esperado. Atualmente, Andréa faz uso diário – com prescrição médica – de uma combinação de cinco medicamentos diferentes para conseguir pegar no sono, pelo menos, por algumas horas.

“É muita droga de uma vez só, e, ainda assim, eu acordo a noite toda. Tudo o que me ensinam eu faço. Tem um chá natural de maracujá que me relaxa e deixa mais serena. Então, tomo os remédios com ele. Durmo logo em seguida, mas não é aquele sono de qualidade, porque acordo várias vezes”, revela a cuidadora.

E ela não está sozinha nas noites em claro. De acordo com a Associação Brasileira do Sono (ABS), 80% da população alega ter algum problema para dormir, sendo que 11 milhões de pessoas tomam medicamentos que induzem ao sono, conforme mostrado na última edição da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) corroboram esse cenário: somente no ano passado, mais de 56,6 milhões de caixas de remédios para ansiedade e sono foram vendidas no país, o correspondente a 1,4 bilhão de comprimidos.

Diretor da Sociedade Mineira de Neurologia, o médico Breno Franco afirma que o uso desse tipo de medicação está “cronicamente alto” e muito difundido entre os brasileiros hoje em dia. Segundo ele, as queixas de insônia são bastante frequentes no consultório e costumam ser feitas por pacientes de faixas etárias variadas. Contudo, aqueles em idade produtiva se destacam por causa do impacto do problema nas tarefas diurnas.

Para a servidora pública Liliane Stefânia Vasconcelos, de 43 anos, foi justamente nesse aspecto que os fármacos mais ajudaram no tratamento da insônia. “Tenho um melhor rendimento profissional, mais concentração e menos irritabilidade, o que melhorou meus relacionamentos pessoais”, avalia.

Liliane lembra que, desde a adolescência, tem dificuldades para adormecer, mas demorou a procurar ajuda. Há 15 anos ela toma remédios e garante que eles trouxeram qualidade de vida sem provocarem desconforto nem problemas de saúde. “Não vejo desvantagens na medicação”, salienta.

Rotina alterada

Andréa Cláudia, por outro lado, não teve a mesma sorte. Entre as principais queixas dela acerca de efeitos colaterais estão falhas na memória e mãos trêmulas. “Tenho vergonha de sair de casa, porque começo a falar uma coisa, me dá um branco, e as pessoas ficam me olhando como se eu fosse doida. Adoro maquiagem, mas não consigo usar o delineador nem colocar um brinco. São coisas bobas, que, para os outros, não significam nada, mas, para mim, sim”, lamenta.

De acordo com Franco, essas são, de fato, algumas das possíveis consequências do uso de medicamentos para dormir. Ele explica que, em alguns casos, o efeito residual do remédio – que deveria agir apenas à noite – acaba levando a uma desatenção durante o dia, o que prejudica o armazenamento da memória e o raciocínio, além de causar um declínio na cognição. “Em idosos, a situação pode ser ainda mais grave, havendo confusão mental e até amnésia”, diz o neurologista.

Outro possível efeito desse tipo de medicação é a pessoa deixar de sonhar. Segundo o médico, alguns fármacos suprimem o sono REM (sigla para Rapid Eye Movement, ou movimento rápido dos olhos, na tradução literal), fase em que acontecem os sonhos e também a consolidação da memória. Algumas classes de remédios vão além e provocam comportamentos anormais, como sonambulismo.

Explicações variadas

Existem múltiplas causas para a insônia, conforme informado pelo diretor da Sociedade Mineira de Neurologia, e identificá-las acertadamente é fundamental para definir o tratamento correto. “Temos duas principais: as agudas e as crônicas. As primeiras duram menos de um mês e, geralmente, vêm de algum estressor físico ou psicológico que interfere na dinâmica do sono”, esclarece Franco.

No caso dos insones crônicos, doenças, síndrome das pernas inquietas e transtornos de ansiedade e de depressão são apontados como possíveis gatilhos para a falta de sono. “Uma causa frequente é a pessoa entrar em um círculo vicioso de preocupação no momento em que ela deveria relaxar. A cabeça começa a pensar muito, mesmo o indivíduo sabendo que precisa dormir para aguentar o dia seguinte”, completa o neurologista.

A boa notícia é que uma vida livre do sono artificial é, sim, possível – mas não para todos. O médico Breno Franco ressalta que as intervenções não farmacológicas (chamadas de “primeira linha de tratamento”) tendem a ter os mesmos efeitos dos remédios. A mais usada, segundo ele, é a terapia cognitiva comportamental, uma abordagem psicoterápica específica, breve e focada no problema atual do paciente.

“Na hora de retirar a medicação, talvez seja prudente introduzir alguma dessas estratégias. Os remédios de receita azul [que podem causar dependência] têm que ser tirados muito vagarosamente, senão causam sintomas de abstinência. Já os tratamentos não farmacológicos oferecem riscos muito menores”, destaca Franco.




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