DOR SEM FIM

Pesca, religião, artesanato, higiene. Tudo isso a água do rio Paraopeba – atingido pela lama de rejeitos da barragem que se rompeu em Brumadinho.

Criado em 23 de Julho de 2019 Capa
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Sara Lira

“Perdemos um parente, parte do nosso corpo”. Assim o cacique Hayó, de 28 anos, da tribo Naô Xohã, define a contaminação do rio Paraopeba pelos rejeitos de mineração que vazaram da barragem I, da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, na região metropolitana, em janeiro. A comunidade das etnias Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe fica em São Joaquim de Bicas, cidade vizinha, a cerca de 22 km, às margens do trecho do Paraopeba afetado pela massa tóxica da atividade minerária. Outra aldeia, a Kamakã Grayra, em Esmeraldas, na mesma região também pode ter sido afetada, segundo a Funai. No total, ao menos 305 km do manancial foram impactados pela lama de minério.

Ritual que os indígenas fazem de adoração à natureza e também de boas-vindas aos que visitam a comunidade, como a reportagem da  Mais.

A aldeia Naô Xohã está em São Joaquim de Bicas há dois anos e usava as águas do manancial para pesca, de onde saíam, segundo o cacique, piaus, traíras e cascudos, que serviam para alimentar as 27 famílias, totalizando 130 moradores. Eles também tomavam banho, lavavam utensílios e roupas e, principalmente, realizavam rituais religiosos usando a água do manancial.

O cacique explica que, na crença pataxó, o povo foi criado por Niamissun (deus), a partir de uma gota d’água. “A gente entrava na água e sentia a energia no corpo. É muito triste. Perdemos a paz”, destaca Hayó.

A relação dos povos indígenas com os elementos da natureza é profunda, pois eles têm papel fundamental na tradição cultural e religiosa dessas comunidades, conforme afirma o coordenador regional substituto da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Minas Gerais e Espírito Santo, Jorge Luiz de Paula: “Eles entendem que a mata e o rio são sagrados”, diz.

Tragédia destruiu projeto de vida da comunidade indígena em Bicas, que tinha interesse em se constituir como referência na região com venda de artesanato

Medidas

Como os indígenas não podem mais pescar, a Vale, proprietária da barragem que se rompeu, tem doado carne para os membros da aldeia, mas eles temem que a doação não dure por muito tempo. E, como a água do rio se tornou inutilizável para eles, a Copasa disponibilizou à comunidade água encanada para serviços domésticos e higiene pessoal. Para consumo, eles têm recebido galões de uma igreja católica da região, pois, segundo Hayó, a água da Copasa estava causando problemas de saúde, como diarreia.

A lama de rejeitos de Córrego do Feijão deixou sequelas também na vida econômica da comunidade. É que uma das principais formas de geração de renda da aldeia Naô Xohã é o artesanato. Usando sementes, galhos de árvores, folhas de palmeiras, entre outros elementos naturais, os índios produzem colares, pulseiras, colheres de pau, gamelas e apitos, e quase tudo era comercializado para turistas que a tribo recebia antes da tragédia. De acordo com Hayó, após o desastre, o número de pessoas que chegam diminuiu drasticamente, e ele lamenta: “Não queremos viver de doação, queremos viver do trabalho vindo do nosso braço”.

O coordenador da Funai complementa que o desastre interferiu no projeto de vida da comunidade, que tinha interesse em se constituir como uma referência para a região com a venda de artesanato. “Todos esses planos foram comprometidos”, afirma.

A defensora pública do Estado de Minas Gerais Carolina Morishita tem acompanhado os moradores da aldeia Naô Xohã e conta que está criando um vínculo de comunicação constante para que eles saibam a quem denunciar caso sofram alguma violação de direitos. Carolina diz que eles se sentem desrespeitados pela Vale enquanto etnia indígena. “Isso é uma das maiores angústias deles atualmente”, pontua ela.


O cacique Hayó comenta que também as crianças têm sofrido com a quebra da tradição de uso do rio, onde elas brincavam muito. Segundo ele, quando chove, a água fica aparentemente límpida por cima, e os pequenos pedem para brincar, mas os adultos não permitem porque  sabem que o líquido está contaminado. O pequeno Tihi, de 8 anos, sente falta das danças  que ele e os amigos faziam no rio. “O rio era bonito. Agora, não dá mais para fazer o que fazíamos”, lamenta.

Gotas de esperança

Diferentemente da maioria, o pai do pequeno, Tehé, de 35 anos, acredita na regeneração do rio Paraopeba. “Estamos lutando para que nossos bisnetos e tataranetos usufruam dessa água. Continuamos aqui para o rio saber que não vamos desistir”, afirma, referindo-se ao significado espiritual que o local tem para os pataxós. “É muito difícil ver o rio nessa situação. Ele estava vivo. Sempre zelamos por ele”, completa a indígena Tanara, de 36 anos.

Para Angohó, de 53 anos, mulher do cacique, a expectativa é que o manancial se regenere e um dia possa ser usado novamente pelas futuras gerações. Para isso, a comunidade realiza um ritual três vezes ao dia para “curar” o rio. “Nós nos preocupamos com o futuro de nossa cultura. Tenho esperança. Não vou poder ver o rio curado, mas creio que a crianças, sim”, diz ela. “A Vale quebrou nossos galhos, mas não nossas raízes”, destaca Angohó, que é liderança na área e irá representar os povos indígenas em um evento da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, na Suíça, em julho.

Esmeraldas

Ao longo dos mais de 300 km do rio Paraopeba afetados pelo desastre, outra comunidade indígena também lamenta a morte do manancial. Trata-se da aldeia Kamakã Grayra, do povo Pataxó Hã Hã Hãe, em Esmeraldas, também na região metropolitana. De acordo com a cacique Marinalva Exina, cerca de 70 indígenas moram no local, atualmente pertencente à Fundação Educacional Caio Martins (Fucam).

Ela conta que a comunidade usava o rio para a pesca e para rituais religiosos, de adoração às águas e à natureza. Banho, eles não tomavam, pois, no trecho em que moram, a correnteza é mais forte: “Toda a nossa tradição é feita à beira dos rios. É uma perda muito grande”.

A comunidade ainda não foi reconhecida como afetada pela tragédia do rompimento da barragem. Por isso, os índios que ali vivem dependem de doações, principalmente de carne, já que não conseguem obter o próprio sustento do rio mais. Segundo Jorge Luiz de Paula, a fundação está reunindo informações para encaminhar aos órgãos competentes o requerimento da inclusão deles na lista dos atingidos.

Recuperação do Paraopeba

De acordo com o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), desde o fim de março não são constatados índices de metais pesados, como chumbo, em níveis superiores aos estabelecidos pela legislação no rio Paraopeba. O manancial é acompanhado e monitorado periodicamente por órgãos como o Igam, a Copasa, a Agência Nacional das Águas (ANA) e a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), além da própria Vale.

Em comunicado divulgado pela mineradora no dia 5 de junho, a empresa afirma que acredita na recuperação do rio. Segundo a Vale, alguns pontos do rio já começam a voltar à condição original, concentrando a área com maior turbidez a até 40 km da estrutura colapsada.

“Uma das certezas de que o rio pode ser recuperado veio dos testes de ecotoxicologia, que medem os efeitos dos elementos químicos em organismos sensíveis a alterações ambientais, presentes ao longo da bacia do Paraopeba e do rio São Francisco. Até agora, foram realizadas 6.000 análises, e os técnicos não detectaram alteração aguda em nenhuma das amostras. A toxidade crônica ficou restrita à região do rompimento e aos primeiros 40 km do Paraopeba”, diz texto da Vale.

Segundo a diretora do Igam, Marília Carvalho de Melo, há a tendência de recuperação e da possibilidade de utilização do rio em médio prazo. Mas, por enquanto, o uso das águas permanece proibido. “Atualmente, a situação é bem diferente do primeiro período. Os dados mostram isso, mas claro que ainda, por medida de segurança, continuamos com o uso da água suspenso”, orienta.

Atualmente, conforme Marília, a pluma de rejeitos permanece no reservatório da Usina de Retiro Baixo, em Pompéu, localizada em uma região do Paraopeba anterior à usina de Três Marias e ao rio São Francisco.




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