GARIMPANDO O PASSADO
Minas do Palácio Velho, em Ouro Preto, ponto turístico recentemente aberto na cidade histórica, é um dos locais importantes da região que remontam ao Ciclo do Ouro no Estado
Ouro Preto é uma cidade que respira história e arte. Passear pelo município é fazer uma viagem no tempo e reviver momentos marcantes de nossa história, como a Inconfidência Mineira e o período colonial, tendo uma pequena noção do que os negros sofreram durante a escravidão. Aliás, foram eles os principais personagens de um local turístico aberto há alguns meses no município, chamado de Minas do Palácio Velho.
O lugar foi um dos principais pontos do princípio da extração de ouro no século XVIII no Estado. Lá, a estrutura feita para a atividade permanece intacta, incluindo orifícios produzidos nas paredes da mina, estacas de braúna – utilizadas na construção e na manutenção do espaço – e os caminhos utilizados para a extração. No total, são cerca de 300 metros que expõem o caminho do ouro dentro da escavação.
A mina foi aberta para visitação em julho do ano passado e recebe aproximadamente 900 pessoas por mês, turistas brasileiros de vários Estados e de diversos países, como França, Bélgica e Colômbia. Tudo consta no livro de registro de visitantes.
No peso dos escravos
As técnicas utilizadas para a extração do ouro foram trazidas pelos africanos, que já as manejavam em seus países de origem. De acordo com o guia da mina, Gustavo Pereira Barbosa, que acompanhou a reportagem da revista Mais no local, os escravos destinados à mineração eram trazidos de nações como Gana, Togo e Benim, regiões onde já estavam habituados com a atividade minerária.
Durante a visita à mina, é de se elogiar a expertise aplicada por eles durante o processo. Os escravos retiravam o ouro, que ficava grudado nos blocos de quartzo, e sabiam identificar até onde a pedra poderia oferecer a quantidade necessária do mineral. A época era de riqueza, pois em uma pedra de 25 gramas de quartzo era possível extrair a mesma quantidade de pó de ouro, segundo Barbosa. Em alguns dos pontos, podem ser vistos os buracos na parede que demonstram locais onde eram emplacadas estruturas para a retenção de água ou para a lavagem do mineral. “Com o resgate dessas minas, entendemos as técnicas africanas de extração de ouro. Foi através do conhecimento do negro que se moveu a economia na Europa, já que o ouro daqui ia para lá”, afirma o guia.
Técnicas
Na região, já existia a retirada de ouro por meio do desmonte hidráulico, através de captação de água, conforme comenta o historiador e mestrando no programa de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) André Castanheira Maia.
Outra técnica era a de perfuração subterrânea, como a realizada na mina em questão. “Essa era mais trabalhosa, porém mais eficaz. Primeiro, eles faziam o sarilho, um grande furo da superfície até o espaço interno, para pesquisar a área. Eram buracos em torno de 10 m a 20 m de profundidade que, depois, serviam para a retirada de materiais. Na parte de cima e interna, havia a estrutura para a coleta do ouro”, detalha Maia.
De acordo com o pesquisador, a hipótese é que a região tenha sido o local onde essas técnicas foram primeiramente aplicadas em Minas Gerais e no Brasil. Além disso, ele acredita na existência de outras minas, formando um complexo. Daí o nome no plural “Minas do Palácio Velho”. “A novidade é a constatação disso por meio dos estudos atuais”, salienta.
O professor do Departamento de Engenharia de Minas da Ufop Hernani Mota de Lima completa que essa mina também começou a ser mecanizada, mas, por conta de problemas legais, a técnica não durou muito. “O Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege introduziu um moinho. No entanto, por questões legais da época, ele teve que se retirar e foi para a mina da Passagem, em Mariana”, informa.
Nas minas de Ouro Preto, foram extraídas em torno de 35 toneladas de ouro no século XVIII. Juntas, as minas do Estado, espalhadas por cidades como Mariana, Sabará e Nova Lima, geraram cerca de 650 toneladas de ouro em um período de cem anos.
Riqueza no quintal
As Minas do Palácio Velho, que levam esse nome devido ao fato de estarem próximas da casa onde residia o governador da época – Pedro de Almeida Portugal, conhecido como Conde de Assumar, que foi sucedido por André de Melo e Castro, o Conde das Galveias –, ficam nos fundos da casa de dona Maria André dos Santos, de 81 anos, no terreno que foi herança do pai dela. Ela e a família sempre souberam da existência da mina, mas nunca tiveram condições de abri-la para o turismo. Quem juntou esforços foi um dos filhos, Marcelo André dos Santos, responsável pelo espaço atualmente. Ao lado do guia Gustavo Pereira Barbosa e do historiador André Castanheira Maia, eles realizaram estudos e averiguaram o espaço para a abertura da mina.
O lugar era puro mato e entulho, já que acima do nível do terreno há outras casas, e os moradores tinham o costume de jogar lixo lá. Os três se reuniram e retiraram toda a sujeira, capinaram o local e encontraram duas “bocas” (entradas da mina). Nesse processo, foram recolhidos cinco caminhões e três caçambas de entulho, recorda-se Gustavo.
Durante as escavações internas, eles também localizaram ferramentas utilizadas na atividade minerária e uma imagem em braúna de um Preto Velho, entidade reverenciada na religião umbanda, que os seguidores acreditam ser o espírito de um escravo ou que se identifica com um escravo. “Pelas características do objeto, imaginamos que essa imagem seja antiga, da época da escravidão”, estima o guia. A partir disso, foram realizados os estudos geológicos, para garantir a segurança das visitações, e também todos os trâmites legais, como a obtenção de alvarás.
O resultado é mais do que satisfatório. “Desde meus 7 anos, eu era doido para abrir essa mina, mas não tinha condições financeiras. E saber que no meu quintal há uma parte importante da nossa história preservada é muito relevante para mim e para minha família”, salienta Marcelo. A mãe dele, Maria dos Santos, fica emocionada ao falar do local. “Eu tinha vontade de chorar quando via o povo entrando. Fico feliz demais. Acho que não mereço isso. É uma bênção de Deus”, diz com a mesma simpatia e o sorriso com que atende os visitantes na recepção. “Essa mina é ímpar porque, pela história, foi uma das mais ricas daquela época, de um conjunto de mais de cem minas do Palácio Velho”, diz o guia Gustavo Pereira.
Visita surpreendente
Quem termina a visita tem mais do que conhecimento devido a tamanha surpresa com o Ciclo do Ouro. É essa a opinião da designer Márcia Costa, de 54 anos, turista paulistana que passeou por Ouro Preto pela primeira vez durante a visita da reportagem à cidade. “Eu nunca tinha visto uma mina de ouro. Apesar de gostar de história, fico triste, pois vejo que exploraram os negros e levaram toda a nossa riqueza para fora”, comenta.
Para o estudante de filosofia de Maceió (AL) Marco Antônio da Silva Filho, de 23 anos, também pela primeira vez na cidade, cada minuto do passeio pela mina valeu a pena. “Vi de perto toda a história que, normalmente, só ouvimos falar. É um conhecimento muito rico”, diz ele.
Já na opinião do técnico em mecânica Rafael Antônio de Assis, de 27, a história por trás dessa e das demais minas do município é tão importante que esses espaços merecem maior destaque no turismo da cidade. “Deveria haver mais recurso público e incentivo para atrair um número maior de visitantes a essas minas”, acredita Rafael, que é de Betim, na região metropolitana da capital mineira.
Turismo
Para o professor Hernani Mota, além do resgate histórico, a abertura dessas minas para visitação turística oferece outra vantagem: a geração de renda para os donos dos terrenos onde as entradas subterrâneas são descobertas. “As minas são de grande importância para a cidade de Ouro Preto, pois fazem parte da herança social, cultural e econômica de um período extremamente relevante. Hoje, além de serem um símbolo vivo desse período, são um grande atrativo turístico e fonte de renda para vários ouro-pretanos. Além disso, seu contexto histórico é uma ferramenta de ensino e pesquisa para muitos estudiosos”, diz Vecchia.
A região de Mariana também conta com minas do século XVIII que hoje são pontos turísticos de destaque. Um dos exemplos é a Mina da Passagem, cuja visitação é feita por meio de uma espécie de trem, que desce até as galerias subterrâneas com profundidade de 120 m, onde é possível ver um lago natural.
mina descoberta "por acaso"
O estudo sobre as Minas do Palácio Velho é um desdobramento de uma série de ações guiadas por outros pesquisadores de Ouro Preto. De acordo com o historiador e mestrando no programa de história da Ufop André Castanheira Maia, que está desenvolvendo sua dissertação sobre as Minas do Palácio Velho, o espaço chamou a atenção dele após a leitura do livro “Passeio por Ouro Preto”, de Lúcia Almeida Machado. Na obra, escrita na década de 1960, a autora orientava a visita à mina de Chico Rei, mas, pelas coordenadas, os leitores eram direcionados às minas do Palácio Velho.
“Na época, onde hoje existe a Mina do Chico Rei, ela ainda não funcionava como atualmente. Nos anos 60, essa região não era ocupada como é hoje. Havia poucas casas, e elas eram isoladas. Mas, pelas coordenadas, percebi, que ela direcionava, na verdade, para outra mina. Há cerca de cinco anos, procurei o Gustavo, que era morador do bairro, e ele me levou ao terreno do Marcelo”, relata.
Ao chegar ao local, Maia se deparou com a mina e a cachoeira que dela escorria. Daí ele decidiu focar os estudos apenas naquele espaço. “Tínhamos essa mina pouco conhecida e pouco valorizada no sentido histórico, a qual descobrimos meio que por acaso. Foi aí que começou minha parte da pesquisa”, afirma o historiador.
Uma cidade minerária
Em Ouro Preto, há cerca de 350 minas subterrâneas, utilizadas no período de extração do ouro no século 18. De acordo com o historiador André Maia, nem todas as galerias foram usadas para extração, mas todas fazem parte do mesmo sistema, seja para acesso, seja para o desvio de água ou de materiais. Seis dessas galerias estão abertas para visitação, segundo a Secretaria Municipal de Turismo: Mina de Santa Rita, Chico Rei, Jeje, Du Veloso, Felipe dos Santos e Palácio Velho. “Cada uma possui características quanto a escavação, extensão, localização e riquezas arqueológicas singulares, o que instiga o visitante a conhecer não apenas uma mina, mas todas”, destaca o secretário de Turismo, Felipe Vecchia.
O professor do Departamento de Engenharia de Minas da Ufop Hernani Mota de Lima se dedica a estudar as minas de Ouro Preto há mais de 20 anos, desde 1994. Segundo ele, há um grupo de trabalho na universidade que faz o levantamento histórico desses espaços, das atividades de mineração e de como se procederam no século 18, estudando a importância dessas minas do ponto de vista turístico e seu impacto geotécnico, entre outros aspectos. Ele ressalta que algumas delas também constituem reservatórios de água que servem à população por meio de captação realizada pela prefeitura.
De acordo com o professor, a Serra do Veloso, localizada na cidade, é repleta de minas subterrâneas, em uma extensão de 5 km, indo do início do município, no bairro do Veloso, até o Taquaral, na divisa com Mariana. Segundo ele, essas estruturas abaixo do solo não oferecem perigo à cidade, como desabamentos. “São riscos localizados, em tubulações de água ou de esgoto, ou algumas construções. A cidade não vai afundar”, explica. Hernani destaca que os estudos sobre essas minas são permanentes, bem como o mapeamento e as pesquisas históricas desses espaços. O professor trabalha em conjunto com Frederico Sobreira, também professor da Ufop, no grupo que pesquisa as minas.
Açoitados
Os negros deram uma importante contribuição para a mineração na época, mas, ao mesmo, tempo, foram os que mais sofreram na atividade. O guia das Minas do Palácio Velho, Gustavo Barbosa, conta que as condições de trabalho dentro das minas eram degradantes e desumanas. Os escravos ficavam dentro do espaço fechado e mal ventilado por horas, sem se alimentarem, vestidos apenas com uma bermuda e descalços. “A lamparina vinha queimando o oxigênio e exalava uma fumaça escura e fedorenta, o que tornava o ambiente ainda mais difícil”, completa.
Não eram somente os adultos os alvos dessas atrocidades. Segundo Gustavo, a partir dos 8 anos, as crianças eram separadas de suas famílias e encaminhadas para o trabalho na mineração. Elas faziam pequenas atividades fora da mina e, a partir dos 11, já iam para os túneis, onde podiam sofrer acidentes como soterramentos e ficar feridas ou até mesmo ter sequelas como cegueira ou surdez. Para saber quais crianças selecionar, os capatazes separavam as “mulatas parideiras”, que chegavam a custar 2,1 kg de ouro. “Eles já observavam a genética dessas mulheres para que elas procriassem os mais baixos, que eram direcionados para a mina assim que atingissem a idade”, diz.
De acordo com Barbosa, os mais baixos eram escolhidos, pois isso facilitava a locomoção no interior dos túneis. Segundo ele, os mais altos eram castrados para não gerarem filhos da mesma estatura. Um escravo baixo chegava a custar 1,8 kg de ouro, o dobro de um comum. “No Museu da Casa dos Contos, também em Ouro Preto, há um castrador que era usado para esse fim. Na época, utilizava-se o termo ‘escravo acoitado’. É daí que surgiu a palavra ‘coitado’, explica ele.