Lar, novo lar
Minas é o terceiro Estado brasileiro com o maior número de crianças e adolescentes à espera de adoção e de adultos querendo adotar. Excesso de burocracia e preferência por bebês dificultam o encontro entre as duas partes.
Bento chegou ao lar de Luciana e Rafael com 10 dias e, hoje, tem 3 anos; e, se a burocracia típica do processo de adoção for menor, o rapazinho vai ganhar uma irmã, já que o casal busca uma menina de até 4 anos
A administradora Luciana Coelho Pereira Motta e o marido, o gerente comercial Rafael Marques Motta, ambos de 39 anos, sempre desejaram formar uma família com filhos. Casados há 14 anos, eles planejaram a primeira gestação para o quinto aniversário de casamento, mas, depois de o casal sofrer dois abortos, a vida deles passou por uma reviravolta – emocional, principalmente –, e eles decidiram adotar uma criança. “A gente nem sabe quem falou nisso primeiro, mas nós pensamos juntos. Então, fomos para a Vara da Infância e da Juventude saber como funcionava, pois nem tínhamos ideia”, relembra Luciana.
Ela conta que queria muito um bebê, para viver a experiência de trocar fraldas, dar mamadeiras e acompanhar o crescimento. O passo seguinte para realizar esse sonho foi o preenchimento de uma papelada para o processo de habilitação, que inclui avaliações com psicólogo e assistente social, curso preparatório e definição do perfil da criança desejada.
Luciana e Rafael decidiram que poderia ser menino ou menina, de cor branca ou parda e com uma doença tratável. Após simbólicos nove meses, eles, enfim, entraram na fila da adoção. Quase um ano depois, deram as boas-vindas a Bento, com 10 dias de vida – hoje com 3 anos.
“Ele nasceu com fissura labial e fenda palatina. Nós não éramos os primeiros na fila à espera de um recém-nascido, mas as pessoas que estavam na frente não aceitavam esse tipo de doença”, diz a administradora.
Caminhos cruzados
A busca por bebês lidera as estatísticas, e é justamente essa preferência que faz com que a equação não feche. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem, atualmente, 43.636 interessados em adotar no Brasil. Desse total, 5.302 são de Minas Gerais (o equivalente a 12%) – o Estado fica atrás apenas de São Paulo e do Rio Grande do Sul.
Do outro lado, há 48.384 meninos e meninas em unidades de acolhimento no país, sendo 5.101 em território mineiro. “Entretanto, segundo o Cadastro Nacional de Adoção, há apenas 8.593 crianças e adolescentes aptos à adoção no país, dos quais 992 estão em Minas. O restante ainda não possui situação jurídica definida”, explica a advogada e diretora jurídica do Grupo de Apoio à Adoção de Belo Horizonte (GAABH), Larissa Jardim.
Segundo ela, somente quando são exaustivamente esgotadas todas as tentativas em relação à reinserção na família biológica é que esses meninos e meninas podem ser incluídos em novas famílias, que passaram pelo processo de habilitação para adoção.
“Daí surge a necessidade de cruzar os destinos de adultos cheios de amor e de uma criança necessitando dele. Mas o perfil restrito dos pretendentes dificulta esse encontro, pois mais de 92% dos candidatos a pais preferem crianças de até 7 anos, enquanto quase 70% das crianças e dos adolescentes aptos à adoção têm de 7 a 17 anos, conforme o CNJ”, diz Larissa.
Diante desses números, Luciana Motta reconhece que engrossa as estatísticas, mas também que não precisou esperar muito tempo pelo fato de ter aceitado um filho que precisava de cuidados médicos. Realizada como mãe “desde o início”, como faz questão de ressaltar, ela e Rafael entraram novamente na fila da adoção, há cerca de dois anos.
“Agora, queremos uma menina de até 4 anos, que também pode ter uma doença tratável. Na minha casa não tem essa diferença de ser adotado”, conclui a administradora, cheia de felicidade por estar construindo uma família.
Amor multiplicado
Parte da fatia menor do grupo de pretendentes, a consultora de gestão Christiane Ronceti e o supervisor de manutenção Gustavo Ronceti, ambos de 42 anos, optaram pela adoção tardia (crianças acima de 7 anos). Caçula de uma turma de 12 filhos adotados, Christiane nunca teve dúvidas de que queria fazer por outros jovens o mesmo que os pais fizeram por ela.
Desde o início do processo de habilitação, o casal concordou em adotar uma criança de qualquer idade – “meu marido brincava, dizendo que o filho só não podia ser mais velho que ele”, diverte-se a consultora –, de qualquer cor e com doença tratável. Além disso, eles decidiram que aceitariam também até dois irmãos.
“Passamos um fim de semana com a ficha que tínhamos que preencher, e foi muito sofrido, porque, a partir do momento em que é definido o perfil, você privilegia alguns e fala para outros, mesmo que indiretamente, que não os quer”, afirma Christiane.
Aproximadamente dois meses depois, eles já estavam habilitados e oficialmente na fila para adoção. Nove meses mais tarde – novamente o tempo de uma gestação –, receberam um telefonema sendo chamados à Vara da Infância e da Juventude para conhecerem a história dos irmãos Felipe, então com 8 anos, e Paulo, de 5.
A caminho da primeira visita ao abrigo, Gustavo discutiu com a esposa, famosa por ser uma “manteiga derretida”, para que ela não chorasse na frente das crianças quando se encontrasse com elas. Mas, quando a porta se abriu, e o caçula apareceu – o casal já conhecia os meninos por fotos –, foi o pai que não conteve as lágrimas e mal conseguiu sair do lugar.
“O período de adaptação durou 45 dias, sendo que a psicóloga disse que poderia levar até seis meses. Ela nos alertou para o fato de que as crianças provavelmente não nos chamariam de ‘pai’ e ‘mãe’, por já serem crescidas, mas, no segundo dia, o mais novo entregou um cata-vento para meu marido e falou ‘segura aí, pai’. A psicóloga até arregalou os olhos”, diz Christiane.
Amorosidade
Se, por um lado, a relação de amor da nova família foi construída rapidamente, por outro, o excesso de burocracia fez com que o processo definitivo de adoção fosse muito moroso. Somente em 10 de abril último – três anos depois – é que a certidão de nascimento de Felipe e de Paulo passou a ter os nomes dos pais adotivos, e não mais o da mãe biológica.
“É sofrido, mas eu não desistiria nunca. Tanto é que entramos na fila novamente, agora para adotar duas meninas. Infelizmente, porém, temos que passar pelo processo todo novamente, inclusive o curso, que aborda legislação, e ele demora a acontecer. Entendo que certas coisas devem se repetir mesmo, mas outras poderiam ser mais ágeis, porque ficamos muito tempo esperando, e as crianças também”, avalia a consultora.
E é exatamente o tempo que joga contra os pequenos à espera de uma nova família. Quanto mais velhos, menores as chances de serem adotados. Para tentar reverter esse quadro, o GAABH tem trabalhado em campanhas de conscientização a fim de chamar a atenção de pretendentes para a possibilidade de terem filhos com mais de 7 anos.
“A verdade é que as crianças e os adolescentes que vivem em instituições de acolhimento são aqueles com os quais o Estado e a sociedade falharam muito. Os mais velhos, geralmente, são marginalizados, mas estamos engatinhando para mudar essa situação”, salienta a advogada Larissa Jardim.