“ Lixo, para mim, é sinônimo de vida e cidadania”

Conversa Refinada

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Criado em 27 de Abril de 2015 Conversa Refinada

ENTREVISTA l MARIA DAS GRAÇAS MARÇAL - Fotos: Samuel Gê

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Dona Geralda, vice-presidente da Asmare, conta um pouco de sua trajetória de luta e coragem nas ruas de BH; o trabalho desenvolvido ela catadora de papel já rendeu à associação o reconhecimento e a homenagem de entidades como a ONU e o Banco Mundial.
 
Luna Normand
 
REVISTA MAIS - Dona Geralda, conte-nos um pouco de sua história.
MARIA DAS GRAÇAS MARÇAL - Meu nome é Maria Das Graças Marçal, mais conhecida como Dona Geralda. Nasci em Belo Horizonte, na Pedreira Prado Lopes. Minha mãe era de Serro, no interior de Minas Gerais. Ela morava na roça, passou muito aperto lá e decidiu vir para a capital melhorar de vida, mas, infelizmente, não foi isso o que aconteceu.
Pouco tempo depois de ter chegado aqui, meu pai morreu e ela foi parar na rua porque não tinha onde morar. Teve nove filhos, mas muitos morreram ainda na roça, vítimas de desnutrição.
 
A senhora é casada? Tem filhos?
Não sou casada, mas me considero casada porque tem 48 anos que vivo com uma pessoa. Tenho nove filhos. Todos cataram papel comigo, mas hoje eles estão em outro setor.
 
A senhora estudou até que série? É verdade que só aprendeu a ler aos 49 anos de idade?
Nunca estudei. Frequentei muito pouco a escola, só até a 1ª série. Realmente, aprendi a ler muito tarde. Por isso, leio muito pouco. Trabalho mais com a mente e com a boa vontade que eu tenho.
 
Quando começou a catar papel nas ruas e por quê?
Comecei aos 8 anos, para poder ajudar em casa, pois eu estava passando fome. Lembro que vi algumas meninas catando papel naquela época e acabei indo com elas. Minha mãe tinha ido para a rua pedir esmola e fui eu que a chamei para catar papel, pois via que ela era muito humilhada. A gente vendia o papel e, com o dinheiro, colocava comida em casa. Digo que, hoje, as pessoas começam a catar papel pelo meio ambiente. No meu caso, foi pela fome mesmo.
 
Como foi sua infância nas ruas?
Foi ótima. Eu ia para o Parque Municipal (Américo Renné Giannetti) brincar. Geralmente, pegava carona na traseira de ônibus. De manhã, eu catava papel e, à tarde, eu brincava. Tive uma infância boa. Era diferente, muito mais tranquilo, e as pessoas respeitavam as crianças. Hoje em dia, não tem isso.
 
E como era catar papel nas ruas naquela época?
Tinha muita discriminação. Não havia essa conscientização em relação ao meio ambiente. As pessoas achavam que estávamos catando lixo, mas, se fosse lixo, ninguém comprava.
 
E hoje, como é?
Hoje mudou porque existe respeito. As pessoas respeitam o catador.
Elas sabem que ele está gerando renda com aquilo e ainda preservando o meio ambiente.
 
Em entrevistas anteriores, a senhora disse que, antes de redescobrir sua autoestima, andava só de cabeça baixa, era discriminada e bebia como forma de escapar da realidade. Bebida e drogas são vícios comuns nas ruas?
Sim. Graças a Deus, eu não cheguei a usar drogas, mas bebia muito. Puxava dois carrinhos de papel por dia, criava menino e bebia para esconder um pouco o sofrimento. Não aconselho ninguém a beber.
 
Como e quando foi que reconheceu o seu valor e decidiu mudar? Foi quando fundou a Asmare?
Sim. Quando eu vim para a Asmare, me tornei vice-presidente. Foi então que comecei a pensar: ‘como iria dar conselhos para outros catadores bebendo daquele jeito?’ Então, resolvi parar de beber. Quando dava vontade, eu bebia água. Eu queria ser um exemplo bom para os outros catadores, para que eles pudessem ver que a mudança de vida é possível. Não tem luta que não é vencível.
 
Como e quando surgiu a Asmare? Você participou da fundação da associação?
A Asmare foi fundada em 1º de maio de 1990. Eu participei da fundação, ao lado de umas 20 pessoas. Antes da Asmare, o lixo era separado debaixo dos viadutos, na Praça Sete e na Casa do Trabalhador. Aos poucos, começamos a nos organizar. Aí apareceu a Pastoral da Rua. A gente achava que ela queria tomar o nosso material. Custamos a acreditar que ela queria era nos ajudar. Fomos conversando aos poucos e criando confiança, até que surgiu a Asmare.
 
Como funciona a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte?
Há vários depósitos de material reciclável em BH, entre eles a Asmare, que, na verdade, é uma associação. A gente fornece o carrinho para a pessoa catar o material. Ela cata, separa por tipo, pesa e vende aquilo.
 
São quanto catadores atualmente e quantas toneladas de material reaproveitável por mês?
Nós estamos com aproximadamente 180 associados, mas já chegamos a ter 300. O número caiu porque, graças a Deus, muitos conseguiram outros empregos e foram para outros setores. São cerca de 500 toneladas de material por mês.
 
Quanto ganha, em média, um catador de papel?
Ele ganha conforme o trabalho. Dá mais ou menos um salário mínimo no fim do mês, mas tem catador que ganha mais porque produz mais. É muito tranquilo sobreviver catando papel, mas é preciso ter força, coragem e não ter vergonha de trabalhar. Essa visão de lixo também tem que sair da cabeça de muitas pessoas.
 
É fácil catar papel?
Não é fácil, mas, se a pessoa quiser trabalhar e tiver coragem, fica fácil. Tem catador de garrafa PET que consegue arrecadar entre R$ 50 e R$ 100 por dia. É doido. Trabalha-se muito, mas se ganha dinheiro também.
 
Qual papel a senhora acredita que a Asmare desenvolve na recuperação da autoestima de centenas de pessoas?
Antes da Asmare, quem catava papel era tido como miserável. Hoje, não. Por meio do lixo, nós mostramos às pessoas que é possível gerar trabalho, renda e recuperar a autoestima de muita gente. Agora, todo mundo que está nas ruas quer catar papel porque sabe que dá para sustentar uma família.
 
O projeto já lhe rendeu diversas homenagens no Brasil e no exterior. Conte-nos essa experiência.
A Asmare foi premiada pela ONU, como uma das mais inovadoras iniciativas de inclusão social, e também pelo Banco Mundial. Por conta disso, fui para os Estados Unidos, há cerca de 13 anos, dar palestra. Também fui eleita uma das cinco mulheres do ano de 1999 pela “Revista Cláudia”. Nunca sonhei com isso, mas fui porque acredito que tudo o que dá certo tem que ser divulgado. Também nunca tinha andado de avião e adorei.
 
Com é o seu dia a dia na Asmare?
Eu chego à sede da associação e, se tiver papel para separar e triturar, eu faço isso. Também resolvo as questões administrativas, mas não fico restrita ao escritório. Coloco a mão na massa mesmo. Como vice-presidente, eu preciso estar em cada canto da Asmare para ver o que está acontecendo. Gosto muito de participar e estar perto dos outros.
 
Todo lixo é reaproveitável?
Não. Papel de bala, higiênico e carbono, por exemplo, não são. Hoje, precisamos lutar para que comecem a reciclar mais o vidro porque ele é muito desvalorizado no mercado, custando apenas R$ 0,02 o quilo. Produz-se muito vidro, mas o seu valor é baixo porque o investimento na sua reciclagem é muito alto.
 
A quantidade de lixo nas ruas aumentou ou diminuiu nos últimos anos? O tipo de lixo também mudou ou é sempre o mesmo?
Só aumenta a quantidade. Isso é resultado do poder aquisitivo da população, que consome cada vez mais e coloca embalagem no lixo. O lixo mudou porque, hoje em dia, existem vários tipos de embalagens. Antigamente, isso era muito reduzido. Garrafa PET, por exemplo, não tinha valor de mercado naquela época. Agora, é um dos materiais mais valorizados.
 
Isso seria bom para o catador, mas ruim para o meio ambiente?
Não. É ruim para o catador porque, quanto mais papel, plástico ou alumínio nas ruas, menor o preço desses materiais. Ficam desvalorizados.
 
Qual tipo de material é mais encontrado atualmente?
Papel e papelão. Já latinha de alumínio quase não se vê mais por causa do seu preço alto. Todo mundo quer.
 
Em tempos de crise hídrica, como destinar corretamente o lixo para tentarmos amenizar a situação de falta de água, muito provocada descarte errado? Como conscientizar a população acerca da importância do reaproveitamento?
Quando a pessoa faz a separação do lixo em casa, ela não está ajudando só a Asmare, mas o meio ambiente. Todos nós fazemos parte deste planeta, e sua preservação é tarefa de cada um de nós. A reciclagem é um trabalho social e ambiental. Hoje, temos a coleta seletiva em vários bairros de Belo Horizonte, mas há ainda aqueles que não têm, e, neste caso, o destino do lixo é o aterro sanitário. Há muito dinheiro enterrado por lá. Pessoas ambientalmente conscientes separam o material reaproveitável em casa e adotam um catador. Outras fazem questão de deixar seu lixo aqui, na Asmare. Quanto mais se recicla, mais se poupa o meio ambiente.
 
Para a senhora, que venceu com a ajuda do lixo, ele é sinônimo de quê?
De vida, cidadania, trabalho, autoestima. O lixo, para mim, nunca foi lixo, sempre foi trabalho e renda. Estou com 64 anos de idade, e, até à minha morte, vai ser assim.
 
Qual o principal desafio da Asmare?
Ser autossustentável. Hoje, aos 24 anos, ainda vivemos de doações.

 




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