'Não cabe ao advogado julgar as atitudes dos clientes'

Conversa Refinada

Criado em 19 de Outubro de 2015 Conversa Refinada

Fotos: Augusto Martins

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Julia Ruiz

COM 25 ANOS DE CARREIRA, o advogado criminalista Ércio Quaresma, 51 anos, ainda tem pressa. Não de obter sucesso, pois a notoriedade já foi conquistada há muito tempo. Ele tem pressa para chegar e sair dos aeroportos, sempre indo e vindo de reuniões com clientes que possui dentro e fora do Estado; indo e vindo de palestras que ministra por todo o país; sem contar as idas e vindas entre seu escritório, em Belo Horizonte, e os tribunais de Justiça e do Júri. O vai e vem é reflexo da experiência atestada em um currículo recheado de casos polêmicos e chocantes, que repercutiram internacionalmente. Do “Massacre de Eldorado dos Carajás” – conflito entre a polícia e trabalhadores rurais ligados ao Movimento Sem Terra (MST), que resultou na morte de 17 militantes, em 1996, no Pará –, passando pelo assassinato da missionária religiosa e ativista socioambiental, a norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Mae Stang, em 2005, também no Pará, ao caso Eliza Samúdio – modelo e atriz pornográfica que se envolveu com o ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, com quem teve um filho, e que está desaparecida desde junho de 2010, em fato tratado como homicídio, Quaresma foi personagem importante para a mídia nos últimos anos. Além de declarações que geraram polêmica, o advogado também se viu nas manchetes quando teve a dependência química exposta. Agora, mesmo entre embarques, desembarques e hotéis, ele buscou uma brecha na agenda para conversar com a Mais e falar abertamente sobre as repercussões das vidas profissional e pessoal.
 
REVISTA MAIS - Conte-nos um pouco sobre sua vida e sua trajetória.
ÉRCIO QUARESMA FIRPE – Nasci em Nova Iguaçu (RJ), em 1964, e lá vivi, com meus pais e meu irmão, até 1979. Em novembro desse ano, minha mãe faleceu. Então, viemos para Belo Horizonte, onde vivia toda a família de meu pai. A partir dali, passamos a residir no bairro Concórdia. Embora tenha sido um trauma muito grande a perda de minha mãe – eu tinha apenas 15 anos –, a adaptação foi um processo natural. Estudei no Orville Carneiro e cumpri o serviço militar no 12º Batalhão de Infantaria. Em 1986, ingressei na Polícia Civil de Minas Gerais, tendo sido um dos fundadores do Sindipol, o primeiro sindicato de policiais do Brasil. A vocação pelo direito e pela advocacia surgiu logo na adolescência. Sempre fui fascinado por filmes policiais, bem como por aqueles que retratavam julgamentos. No primeiro semestre de 1986, fui aprovado no curso de direito da Faculdade Milton Campos, pela qual me graduei em junho de 1990, quando também logrei aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e iniciei a atividade profissional. A paixão pela advocacia criminal foi arrebatadora.
 
O que o fascinou tanto no direito penal?
Basicamente, o amor pelo debate aliado ao desafio de contribuir para a obtenção de justiça. Como disse, sempre fui fascinado por filmes policiais e por aquela forma de atuação. Porém, a realidade do direito brasileiro se afasta muito daquela exibida no cinema, notadamente o americano. Não há a mesma dinâmica, o ordenamento jurídico é completamente diferente. Nossa questão aqui é processual, de construção da prova no fluir da ação penal. Essa construção, em um processo criminal, tem que ser muito bem-avaliada, e nós enfrentamos entraves que prejudicam muito a defesa. Por exemplo, há uma magistrada em Belo Horizonte que coíbe a presença dos réus quando há mais de um no acompanhamento da instrução criminal. São adversidades impostas ao advogado que demandam dele dedicação e afinco para superá-las e demonstrar efetivamente aquilo que está sendo sustentado pelo cliente. Reparar injustiças por meio de um exame apurado das provas em uma investigação, com a restauração da verdade no curso da instrução criminal, é algo desafiador e instigante.
 
Como é sua rotina?
Muito intensa. Divido meu tempo entre o escritório, em Belo Horizonte, e as parcerias que temos no Rio Grande do Sul, no Pará, no Rio Grande do Norte e no interior de Minas Gerais; entre audiências e sessões de julgamento no Tribunal do Júri, no Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal; entre elaboração de petições; atendimento a clientes em unidades prisionais, além de viagens para atos processuais e para palestras que ministro por todo o Brasil.
 
O senhor também foi professor, não é mesmo?
Já ministrei aulas na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), na unidade do Barreiro, e acho que lecionar é uma atividade maravilhosa, mas estava muito difícil conciliá-la com todos os meus compromissos. Então, precisei, em 2008, abrir mão das salas de aula.
 
O senhor possui uma carreira reconhecida, também, pela quantidade de casos polêmicos em que atuou. Quais deles foram os mais marcantes para o senhor e por quê?
No curso de 25 anos de profissão, alguns casos de grande repercussão aportaram em nosso escritório. Entretanto, não faço distinção do caso A para o B ou do caso com para o sem repercussão. Qualquer processo que chega ao escritório, do cidadão mais humilde ao mais abastado, recebe o mesmo tratamento e a mesma dedicação. A partir do momento em que se abraça a causa, não há por que fazer dicotomia dos que têm holofotes ou não, pois é a vida de um ser humano que está em jogo. O advogado não pode se prestar a trabalhar somente quando o caso atrai atenção. É preciso se empenhar da melhor maneira em todos os processos.
Agora, se me questionam quais foram os que provocaram mais alvoroço e reverberação, destaco alguns, como o roubo do Banco Central de Recife, um dos maiores crimes contra o patrimônio da década de 1990, em que advogamos para um cidadão acusado e confesso, inclusive. [Em dezembro de 1991, dez homens invadiram a sede do local e arrombaram o cofre da instituição financeira, roubando o equivalente a R$ 17 milhões, fazendo reféns vigilantes e seguranças. Foi considerado um dos crimes mais audaciosos do país.]
O rotulado “Massacre de Eldorado dos Carajás”, no Pará, em 1996, teve repercussão internacional e uma ampla cobertura da mídia, que incitava a punição a qualquer custo. Mas conseguimos vencer tudo isso e provar que inexistiam elementos para produzir a condenação de nossos clientes, especificamente.
O caso da irmã Dorothy Mae Stang, também no Pará, teve uma repercussão descomunal, com a presença de organizações internacionais, que, juntamente com a mídia, fizeram muita pressão. O caso até rendeu um documentário, produzido pelo canal de TV paga Discovery Channel. [Quaresma defendeu o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, condenado pelo assassinato de Dorothy a uma pena de 29 anos de reclusão].
Por fim, o caso do ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, processo muito complexo que todos conhecem porque provocou um alvoroço, um interesse e uma curiosidade muito grandes da sociedade e dos veículos de comunicação. [Quaresma atuou em parte do processo como advogado de Bruno, mas foi afastado pela OAB depois de ter sido flagrado consumindo crack. Um tempo depois, ele voltou como advogado do ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, acusado de ter matado a ex-amante do goleiro, Eliza Samúdio].
 
O caso Eliza Samúdio chocou o país e ainda parece, para muitas pessoas, algo sem solução. Que avaliação o senhor faz sobre ele?
Não há prova da existência do crime. A residência de Marcos Aparecido foi submetida a um minucioso levantamento pericial, não emergindo qualquer evidência da prova do homicídio. O processo ainda não teve seu exame final levado a efeito pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Há incontáveis nulidades e vícios que serão objeto de análise em segunda instância. A influência da mídia nesse caso conturbou, de forma nociva, o andamento regular das investigações e do processo. Ainda se mostra distante a solução dessa causa pelo Poder Judiciário.
 
 
Até que ponto a mídia pode interferir nos processos jurídicos?
Defendo a liberdade de imprensa. Porém, há monumental influência da mídia nas investigações e nos processos criminais. Primeiras impressões são repassadas para os inquéritos e as demandas penais, firmando verdadeiras sentenças condenatórias no início dos processos. A “Escola Base”, em São Paulo, é exemplo dessa interferência, em que seis pessoas tiveram a vida destruída em razão de informações inverídicas reportadas pela imprensa. Hoje, o dolo eventual nos crimes de trânsito distorce a realidade e a lisura das investigações. Delegados de polícia, promotores de Justiça, magistrados e tribunais são pressionados pela ação da mídia em alguns casos. A situação é preocupante e demanda muito zelo dos atores dos procedimentos criminais. Porém, acredito vencer esse desafio, conduzindo o processo ao seu fim com isenção e imparcialidade.
 
Um homicídio em que o corpo da vítima é completamente aniquilado e que tem possíveis pistas bem "diluídas" pode ser considerado um crime perfeito?
Pois bem, vamos tratar de um homicídio sem cadáver. Pegaram um corpo e o dissolveram de forma que nunca mais haverá vestígios do mesmo. Mas é possível apurar. Eventualmente, pode haver imagens do cadáver sendo jogado dentro de um carro. Também pode haver imagens dele sendo retirado em determinado local, retornando ao veículo somente um indivíduo. Mas isso são apenas exemplos, pois há uma série de fatores que se podem investigar. Você encontra motivação e elementos que demonstram que havia, efetivamente, um plano urdido, ou um delator, por exemplo. Então, é possível apurar, mesmo sem a existência de um cadáver, a prática do crime. Ou seja, esse conceito de crime perfeito é muito da ficção. Se houver boa investigação, os ilícitos poderão ser averiguados. O problema é que esses procedimentos são estimulados, mas não há um processo investigatório idôneo. A cobrança externa, dependendo da repercussão, torna tudo muito complexo.
 
O senhor já enfrentou algum tipo de dilema moral ao defender um cliente que confessou ter cometido um crime contra a vida de outro (s) propositalmente?
O advogado defende o direito. Há causas em que o indivíduo é confesso, restando a mim examinar, dentro da legislação penal, se há alguma possibilidade de reduzir a reprimenda que será fixada pelo magistrado. Por diversas vezes, sustentei a necessidade de condenação do meu cliente. Isso quando havia confissão ou elementos incontroversos de prova sobre a autoria. Não procedo julgamento do cidadão e, sim, defendo-o dentro do limite da legalidade. Não sou juiz, e todos que praticam uma conduta criminosa têm direito à defesa, pois, caso essa não ocorra, o processo se tornará nulo.
 
O senhor com toda a vivência deve ter conhecido muitas histórias chocantes. Depois de tanto tempo atuando, o senhor ainda se surpreende com algum fato? É preciso ter sangue frio para atuar no direito penal?
O ser humano é capaz de condutas criminosas dotadas de enorme repulsa social. Deparo com fatos de extrema gravidade, mas cabe a mim enfrentar essas situações com profissionalismo e sobriedade, abstendo-me de ser tomado pela emoção e fazendo prevalecer a razão na condução da causa. Isso não quer dizer ser insensível. O advogado tem que ser racional, e a consciência prática disso vem com o tempo. No início da carreira, você pode se surpreender, mas, depois, você vai verificar na literatura jurídica que são casos que se repetem em ciclos: massacres, crimes bárbaros... Isso acontece desde o Gênesis, quando Caim matou Abel, configurando um genocídio, pois dizimou um quarto da população mundial. Imagine se houvesse jornais na época! Se há, efetivamente, um crime em que o cidadão foi autor, conversa comigo, declara a autoria, vai a juízo e confessa o crime, tenho que trabalhar com o racional. Pessoas querem linchar, outros querem pena máxima, e aí é preciso discutir, dentro de um parâmetro legal, que aquela não é a reação do Estado-juiz em relação ao delito.
 
Em um episódio ocorrido há alguns anos, o senhor deixou de ser um personagem importante de um fato (como nos casos famosos em que atuou) para ser o grande protagonista, quando teve a vida pessoal exposta ao fazer uso de drogas. Como o senhor lida com esse episódio? O que tirou de tudo aquilo?
Hoje há a ciência de que a dependência é uma doença. Doença pela qual fui acometido e que foi exposta de forma monumental na mídia. A divulgação disso gerou uma enorme conturbação em minha vida pessoal e profissional. Entretanto, em nada afetou minha capacidade de atuar. Nunca perdi um prazo ou deixei de produzir uma defesa. O consumo do entorpecente era feito à noite, eu dormia pela manhã e, à tarde, trabalhava normalmente. Assim como eu, incontáveis pessoas passaram pela mesma circunstância sem deixarem de ser capazes e aptas para o labor. Eu usei, inclusive, essa experiência pessoal para conversar com clientes que tinham seus familiares acusados de tráfico ou estavam envolvidos em processos de homicídio vinculado à droga. Superei o vício com a imprescindível ajuda de minha esposa e me lembro de que, no julgamento do Marcos Aparecido, certo promotor de Justiça disse, referindo-se a mim: “Nunca vi drogado ser herói”. Não sou herói, mas exemplo de que a dependência química pode ser vencida. Certamente, essa é grande lição desse episódio. Hoje, coordeno a Comissão de Prevenção e Apoio à Prevenção à Dependência Química da Caixa de Assistência da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Minas Gerais, ministrando palestras em diversos lugares.
 
Como é o Ércio Quaresma longe dos tribunais, dos escritórios e dos auditórios?
Nos raros momentos de descanso, procuro me dedicar ao máximo à minha família. Gosto muito de cinema e de uma boa gastronomia. E sou torcedor apaixonado do Flamengo.
 
Quem são seus ídolos?
No direito, Décio Fulgêncio, professor de direito penal da Faculdade Milton Campos, e também Sidney Safe, que foi um grande guru para mim. Na música, como tenho um gosto bem eclético, gosto muito de Caetano Veloso e Legião Urbana. Na literatura, sou fã do trabalho do Dan Brown. No cinema nacional, aprecio muito Wagner Moura e Alice Braga; no internacional, Sean Connery, Al Pacino e Robert De Niro são meus ídolos.
 
A que o senhor atribui a notoriedade de sua carreira e o que aconselharia a quem está começando?
Estudar, estudar e estudar. Dedicação ao aprimoramento profissional e à formação pessoal. A carreira é muito espinhosa, mas o exercício profissional é extremamente gratificante.
 
O senhor se considera uma pessoa polêmica?
Não é que eu seja uma pessoa polêmica. Processos complexos chegam às minhas mãos. E, se o direito é meu, não permito que pessoas pisem em meu cliente. Aliás, primeiramente, não permito que pisem em mim, muito menos em meu cliente.

 




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