‘O câncer não é nossa sentença de morte’

Conversa Refinada

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Criado em 11 de Agosto de 2015 Conversa Refinada

Fotos: Augusto Martins

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Modesto diante de seu grandioso trabalho, o médico oncologista Charles Andreé Joseph de Pádua, 44 anos, dedica a vida a buscar a cura de seus pacientes e a melhorar a qualidade de vida das pessoas com diagnóstico de câncer. Betinense de coração, o presidente da Orcca, agora, une forças para efetivar no município um projeto pioneiro: construir o primeiro hospital filantrópico para tratamento contra o câncer
 
Lisley Alvarenga
 
REVISTA MAIS - Como a Organização Regional de Combate ao Câncer (Orcca) surgiu em Betim?
CHARLES DE PÁDUA - A ideia surgiu desde quando eu e o doutor Vitor Hugo (Silva Lopes Rodrigues, vice-presidente da Orcca) trabalhávamos no Hospital Regional, na década de 90. Na época, atuávamos como clínicos e, sempre quando atendíamos pacientes com o quadro possível de câncer, encaminhávamos para o Hospital da Baleia, em Belo Horizonte. Percebemos a necessidade de esses pacientes e de suas famílias terem um apoio durante o tratamento no município. Em 2005, ele e eu conseguimos efetivar o projeto em cartório, mas, somente em 2009, após ter sido implantado na cidade o SUS (Sistema Único de Saúde), conseguimos a cessão desse terreno, pelo Cetus (Medicina Oncológica), no bairro Jardim Brasília, onde estamos até hoje. Elegemos uma assistente social para ficar à frente do projeto e fomos em busca de parceiros que pudessem financiar a reforma do imóvel. Ainda em 2009, inauguramos a sede e, na comemoração do Dia Nacional de Combate ao Câncer, no dia 27 de novembro, fizemos uma caminhada para chamar a atenção da população de Betim para o projeto. Um ano depois, a Orcca começou a ganhar um pouco mais de adeptos. Criamos um bazar para vendas de vestuário e instalamos o nosso telemarketing para captar recursos.
 
Como era a estrutura inicial da organização?
Era uma casinha muito modesta. Os cômodos eram escuros, muitos não eram pintados. Tínhamos um problema crônico de vazamento no telhado, e não havia acessibilidade nem condições para atender a pacientes com câncer. Além de mim, como presidente, e do doutor Vitor Hugo, como vice, contávamos com a colaboração do doutor Bruno Côrtes Aragão, que atuava, e atua até hoje, como tesoureiro, da enfermeira Maria Conceição Pazos y Lopez e de uma assistente social.
 
Como as coisas evoluíram de lá para cá?
Intensificamos o número de ações de divulgação do nosso trabalho. Hoje, sempre que podemos, melhoramos a estrutura da Orcca. Oferecemos medicamentos, cestas básicas, suplementos alimentares e fraldas gratuitas aos pacientes. Caminhamos ainda com a oferta de apoio de outros profissionais, nas áreas de psicologia, assistência social, nutrição e fisioterapia. Em breve, vamos oferecer serviços odontológicos. Através de uma parceria com a Prefeitura de Betim, também ofertamos cateteres de longa permanência para pacientes que fazem quimioterapia. Contando com a ajuda de mais de dez profissionais, atendemos a uma média de 300 pacientes por mês.
 
Agora, o mais novo projeto da Orcca é construir o primeiro hospital filantrópico para tratamento contra o câncer em Betim?
Sim. A doação do terreno, uma parceira entre a Prefeitura de Betim e a Orcca, ocorreu no mês de julho. Esse hospital não será pensado para agora, mas para uma demanda do município daqui a 50 anos.
 
Como será a estrutura dessa unidade hospitalar?
O terreno possuiu 34 mil metros quadrados e fica na Várzea dos Piriás, próximo ao bairro Sítio Poções, às margens da avenida Edmeia. A nova unidade deve contar com 40 leitos de CTI (Centro de Tratamento Intensivo), 200 leitos para internação, dez salas de bloco cirúrgico, e pretendemos ter um setor específico para o transplante de medula óssea. Enfim, o hospital vai prestar um atendimento completo aos portadores da doença, desde o diagnóstico ao tratamento médico, incluindo os apoios psicológico e de assistência social. Deverão ser gerados cerca de 2.000 empregos diretos e 1.000 indiretos.
 
Qual a previsão de inauguração?
A expectativa é que ele comece a ser construído daqui um ano. O problema é que o projeto arquitetônico ainda não foi elaborado, e seu custo é alto, girando em torno de R$ 1,5 milhão.
 
Como vocês vão captar esses recursos?
Pretendemos envolver faculdades e universidades para fazermos um planejamento estratégico a fim de definirmos os próximos passos. O primeiro módulo a ser construído será dedicado ao diagnóstico, com um espaço para a realização de exames e biópsias, uma grande demanda da cidade. Vamos trabalhar com doações de pessoas física e jurídica, além de buscar o repasse de verbas em âmbitos municipal, estadual e federal.
 
Com dez anos de existência, a Orcca, hoje, é uma das grandes referências em Betim quando o assunto é oncologia. Qual o segredo para o sucesso desse atendimento?
Tem a ver com a energia positiva e com o carinho que nós transmitimos aos nossos pacientes. Quando você tem uma boa ideia, não interessando classe social, cor, partido político ou religião, foca e quer transmitir esse bem de uma forma carinhosa e atenciosa, descobre o segredo do sucesso. Quando você recebe um paciente e uma família de braços abertos, percebe que eles terão confiança e a tranquilidade de saber que estarão bem-assistidos. Felizmente, temos muitas pessoas que abraçam a nossa causa porque elas já sofreram aquilo na pele, e o sofrimento delas foi amenizado porque tiveram apoio. Um dia, elas estiveram ali recebendo a doação e, depois, voltaram para fazer o bem também.
 
O Brasil é considerado, atualmente, um dos polos de pesquisa em tratamentos contra o câncer. Como a Orcca contribuiria para esse cenário?
Sou pesquisador e já contribuo para várias pesquisas clínicas. Portanto, não tenha dúvida de que, dentro desse hospital, para que possamos ser referência, teremos que ter um processo educacional para receber alunos que possam fazer estágios e residência médica, além de um espaço para pesquisa de novos medicamentos para o tratamento e o combate ao câncer.
 
Podemos dizer que vivemos uma epidemia de câncer? Ou o aumento do número de casos está relacionado ao fato de estarmos vivendo mais?
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) já alerta sobre a epidemia que viveremos de casos de câncer, sobretudo por conta do aumento da expectativa de vida da população mundial. Se vivemos mais e, principalmente, com maus hábitos, a possibilidade de desenvolvermos câncer é muito maior. Não quer dizer que todas as pessoas que viverem mais terão a doença, mas, se não cuidarmos do nosso corpo ao longo de nossas vidas, ele tenderá a desenvolver mais doenças, como o câncer.
 
Quais são os avanços mais importantes em relação aos tratamentos?
Tivemos muitas coisas boas que surgiram nas últimas três décadas e, certamente, teremos nas próximas. Mas a melhora do tratamento e o advento de novas drogas ainda não superam o diagnóstico precoce da doença. Esse, na verdade, é o grande avanço e, ao mesmo tempo, a grande dificuldade que ainda enfrentamos para combater o câncer. Um exemplo é a medicação do câncer do colo uterino, que foi incluída no rol dos medicamentos oferecidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Ele aumenta consideravelmente a expectativa de vida das mulheres, mas é caro. Cada aplicação gira em torno de R$ 6.000 e não está disponível no SUS e nos convênios. Em contrapartida, o diagnóstico desse câncer é simples.
 
A oncologia vem evoluindo a passos rápidos?
Com muita tranquilidade e segurança, podemos dizer que as pessoas vivem muito mais hoje do que na década passada. E, agora, temos esquemas de tratamento muito mais agressivos contra a doença e menos agressivos contra a pessoa. Até aqueles que possuem doenças incuráveis têm vivido mais e com mais qualidade de vida. Porém, o grande empecilho contra o tratamento da doença é o custo, que ainda é muito alto. Infelizmente, temos que pagar, e caro, para ter essa medicação de ponta. Por isso, volto a dizer: é importante desenvolvermos os medicamentos, mas, acima de tudo, é preciso descobrir a doença de forma cada vez mais precoce.
 
O senhor acredita que a humanização da medicina está sucumbindo diante da tecnologia?
Esta é uma filosofia da Orcca e de todo o nosso corpo clínico no Cetus: é impossível uma coisa substituir a outra. A tecnologia e o carinho, o cuidado médico, podem e devem caminhar harmonicamente. Na Orcca e no Cetus, o foco é a humanização.
 
Como o senhor acredita que se manifesta o desinteresse, tanto por parte da classe política, quanto por parte da classe médica, por tais questões?
Não é fácil tomar conta da saúde pública. É um setor muito complexo, e cujos atores envolvidos nunca estão totalmente satisfeitos. É praticamente impossível resolver todos os problemas e agradar a todos. A máquina pública tem uma dificuldade muito grande de atingir o sucesso e, sendo assim, é sempre mais alvo de críticas do que um atendimento particular, que também tem seus problemas. Muitas vezes também, o usuário pouco sabe de seus deveres e responsabilidades.
 
Durante esses anos à frente da instituição, a história de algum paciente o marcou?
Presencio, todos os dias, histórias que vou carregar para o resto da vida. Mas uma que me chamou muita atenção foi a de uma criança de quase 2 anos que estava na enfermaria do Hospital da Baleia. Ela estava muito magra, não andava, não falava e não brincava. Tinha um tumor muito grande. Recordo que começamos o tratamento de quimioterapia dela numa sexta-feira. No domingo, aconteceu uma tempestade terrível em BH e a luz acabou na unidade. Foi um Deus-nos-acuda, pois os médicos de plantão ficaram preocupados com as crianças mais graves internadas. A equipe acabou se esquecendo dessa criança. Quando chegaram perto do bercinho para verificar como ele estava, viram-na acordada, comendo biscoitos. A partir daí, ela melhorou, adquiriu peso e aprendeu a andar e a falar. Apesar de os livros dizerem que não se curaria, eu acreditava na cura dela. Tinha muita esperança. Passaram-se os anos, e essa criança cresceu, mas, com 3 anos e meio, a doença voltou e ela acabou falecendo. Depois, encontrei com a mãe dela, que me agradeceu por tudo que eu havia feito por ela e pelo filho. Fiquei muito emocionado.
 
Como o senhor encara a morte?
A morte faz parte da vida. Sempre digo que não é a pior coisa que pode acontecer com alguém. Dependendo do grau de sofrimento, de como as coisas se desenrolam, a morte acaba sendo um grande alívio para o paciente. Sei que a família vai ficar eternamente com a lembrança e as sequelas de perder alguém, não podemos ser egoístas e querer manter as pessoas que amamos ao nosso lado a todo custo. É muito importante que entendamos que o fim daquela vida vai chegar.
 
O que o motivou a escolher a carreira médica?
Quando vim para Belo Horizonte estudar, aos 14 anos, gostava muito de trabalhar no computador. Então, acreditava que seguiria algo na área de informática. Porém, no meu primeiro ano no curso científico, me apaixonei por biologia. Sempre fui muito curioso, e esse contato com o corpo humano me chamou muito a atenção.
 
Por que se especializou em oncologia?
Depois de me formar, decidi fazer uma especialidade clínica, como endocrinologia. Na época, estava no Hospital Odilon Behrens, onde conheci o doutor Vitor Hugo. Recordo que tive um paciente com diagnóstico de câncer no estômago, a quem eu gostaria de oferecer algo a mais, mas estava com as mãos atadas. Isso me frustrou muito. Comentei com Hugo, que me sugeriu fazer oncologia. Um tempo depois, ele me convidou para ser o primeiro especializando em oncologia do Hospital da Baleia, e aceitei.
 
O senhor é diretor de relações institucionais do Cetus, presidente da Orcca, diretor da Associação Médica de Betim e ainda atua numa clínica médica em Belo Horizonte e em Betim. Com tantos afazeres, como consegue conciliar vida profissional e pessoal?
Não é fácil. Meus filhos, às vezes, dizem que eu estou trabalhando muito, mas sempre digo: hoje muito menos do que antes. Quando meus filhos eram pequenos, lembrando que fui pai muito cedo, aos 19 anos, não pude dar tanto tempo a eles. Trabalhava demais. Teve uma época em que eu dormia apenas três noites em casa. Andava com uma mala no carro. Quando chegava em casa, cansado, os meninos queriam brincar, e eu não conseguia. Sei que eles sentiram bastante, mas, hoje, já adultos, são eles que não têm mais tempo de ficar comigo, pois todos têm outros compromissos. De qualquer forma, sempre que possível, reúno a família.
 
O que gosta de fazer nos momentos de lazer?
Descobri um hobby que me dá muita alegria: andar de moto. Comprei uma Harley Davidson e adoro pilotar. É um momento em que eu consigo extravasar, encontrar energias, me sentir bem. No motociclismo, a gente faz vários amigos, de toda classe social, de todo tipo profissional. É quando e onde todos nós somos iguais, e ninguém é melhor do que ninguém. São amizades que construímos ao longo da vida.
 
Para finalizar, que mensagem deixaria para uma pessoa que descobre hoje que está com câncer?
Tenha fé, esperança e pense positivamente. O câncer não é necessariamente nossa sentença de morte. Saiba que você não está sozinho nessa caminhada. Por isso, divida seus medos, suas frustrações. Da mesma forma que a gente sabe que o vírus é contagioso, a alegria, assim como a tristeza, também contagia. Precisamos trabalhar os aspectos positivos para que alcancemos o sucesso.

 




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