Projeto que surgiu com o som de uma Caravan protagonizou-se no cenário de BH
Julia Ruiz
A TARDE DO ÚLTIMO SÁBADO DE ABRIL aponta seus primeiros minutos quando o DJ Geraldo Antônio dos Santos, com 57 anos, juntamente com sua equipe, chega para trabalhar sob o viaduto Santa Tereza, no coração de Belo Horizonte. Entre as colunas do local, recentemente reformado para voltar a receber iniciativas culturais, Geraldinho, como é carinhosamente chamado por amigos e conhecidos, faz testes em sua mesa de som enquanto um de seus parceiros limpa o chão e outros instalam os equipamentos de luz. Tudo tem que ser cuidadosamente preparado para proporcionar a Mônica, Cláudio, Dorvalino, Anderson, Eduardo, Geraldo – e a qualquer pessoa que, mesmo de longe, se deixe levar por aquele compasso mágico – horas seguidas de um fenômeno quase que de transe. Não é um sábado comum, mas tem exatamente o mesmo objetivo dos outros terceiros e quartos sábados e do último domingo de cada mês: ecoar nas ruas da capital mineira o balanço da soul music. “A música é da alma” (em tradução para o português), mas toca o coração e toma conta dos pés. Prova disso é que o Quarteirão do Soul celebraria, naquela tarde/noite, um sucesso que há 11 anos atrai centenas de fãs e adeptos do movimento black, além de turistas, visitantes e curiosos.
Discotecário, como se autointitula, na década de 70 e no início da de 80, Geraldinho viu o soul ceder o topo do hit parade brasileiro a outros ritmos. Com isso, ele passou a se dedicar integralmente a outra atividade: lavar carros. E foi em um fim de semana despretensioso, em um quarteirão da Goitacazes – entre as ruas São Paulo e Curitiba –, onde trabalhava ao som do padrinho da black music, James Brown, seu grande ídolo, que ele concebeu a ideia de um movimento cultural de rua que mudaria a própria vida – e a de inúmeras pessoas. “Eu estava tranquilo, lavando um carro, curtindo o som e a companhia de amigos quando percebi algumas pessoas dançando em volta do automóvel. O local era bem movimentado porque muita gente ia à feira aos sábados. Naquele momento, uma senhora passou e me disse: continue com essa ideia, pois ela é ótima. Aí, eu parei e pensei: mas que ideia? Dançar na rua? A frase dela ficou em minha cabeça, e me questionei: será que isso daria certo, já que sempre dancei em clubes? Aquela senhora não sabe, mas quem efetivamente provocou esse start em mim foi ela”.
Geraldinho compartilhou a conversa – e a ideia – com o grupo de amigos, e, juntos, decidiram levar a sugestão a sério. O projeto precisava de um nome, o que foi simples de definir. “Onde eu trabalhava? No quarteirão. O que a gente ouvia? Soul. Então, está aí: Quarteirão do Soul”. E, assim, nascia um dos principais movimentos black do país, iniciativa que não demorou a virar tema de trabalhos acadêmicos e, é claro, a ganhar manchetes nas mídias nacional e internacional.
DA CARAVAN PARA A RÁDIO
Uma Caravan foi o ponto de partida para o projeto de Geraldinho e seus amigos. O problema é que a bateria do veículo, que sustentava o som, acabava rapidamente, o que obrigava o grupo a empurrá-lo várias vezes no meio do evento para retomar a curtição. Geraldinho queria mais qualidade. “Procurei o proprietário do bar ao lado e propus: você contribui com a energia, e nós ajudamos atraindo público para seu estabelecimento. Ele topou, e começamos”.
Ainda assim, discotecário exigente que é, Geraldinho não estava satisfeito. Foi aí que ele pediu ajuda ao DJ A Coisa, figura conhecidíssima no cenário musical da região metropolitana que, adepta da black music, emprestou um equipamento mais adequado ao evento.
Tudo ia bem, e o movimento conquistava, aos poucos, seus frequentadores, mas o fundador sentia que precisava fazer a música chegar a mais pessoas, fora dos arredores do centro da cidade. Foi aí que ele usou o alcance da Rádio Favela para apresentar o projeto a quem ainda não o conhecia. E foi com nada menos que uma inserção ao vivo, diretamente do local, na programação da emissora, que o Quarteirão do Soul foi anunciado pela primeira vez na capital mineira.
DESAFIOS E CONSOLIDAÇÃO
Principal mote do projeto, a rua apresentou também seus obstáculos. À medida que o encontro crescia, Geraldinho ampliava os equipamentos de som, que acabaram sendo furtados algumas vezes. Além disso, o volume da música incomodou alguns moradores vizinhos, que acionaram a polícia. O impasse foi parar no Ministério Público. O discotecário garante, entretanto, que o incômodo não foi provocado pelo Quarteirão do Soul. “Outra pessoa pegou carona no movimento e, nos dois primeiros sábados do mês, plugava um som que não correspondia à qualidade do nosso. Era alto e barulhento, o que aborreceu a população local e, com isso, veio a proibição de continuarmos na Goytacazes”, conta.
O entrave levou o Quarteirão para novo endereço: a rua Santa Catarina, entre a avenida Amazonas e a rua Tupis. O local “bombou”, diz o fundador do projeto, mas aquele “concorrente” – o que causou incômodo aos vizinhos – foi atrás. “Mais uma vez, fomos impedidos de permanecer no lugar. Na ocasião, o viaduto Santa Tereza foi cogitado, mas estava muito sujo e malcuidado. Partimos, então, para uma terceira tentativa, na Tamóios, entre as ruas Paraná e Curitiba. Felizmente, deu certo, e de lá não saímos mais, à exceção de comemorações especiais”.
Sucesso, o Quarteirão do Soul foi abraçado por centenas de admiradores da black music em BH, chegando a reunir mais de 500 pessoas por encontro. Mas manter o projeto não é tarefa fácil. “Nem todos os que participaram da fundação continuaram comigo. Eles ainda frequentam, vêm dançar, mas, daquele grupo inicial, a maioria trilhou outros caminhos, e o parceiro que permaneceu ao meu lado, o Zezinho, faleceu há cerca de um ano. Hoje, apesar de contar com a ajuda de SOULgrandes amigos, quem sustenta, de fato, o Quarteirão sou eu. É como se fosse a minha cruz, mas é uma cruz que amo carregar, pois ver a felicidade dessas pessoas e participar diretamente da retomada do movimento não têm preço”, relata Geraldinho, com brilho nos olhos.
REENCONTRO
A pespontadeira Mônica Andrea de Oliveira, de 52 anos, tem orgulho de fazer parte desse movimento desde muito antes de o Quarteirão existir, quando, mais jovem, frequentava as tradicionais casas noturnas belo-horizontinas que traziam a soul music em seu repertório. Para ela, a ideia de Geraldinho significou reviver aquela expectativa da chegada do fim de semana para dançar e ainda reencontrar os amigos que foram companheiros de clubes da capital, no auge do estilo. Dançarina por hobby, Mônica recorda que quase não acreditou quando ouviu, naquela transmissão da Rádio Favela, que um “baile de rua” estava sendo promovido. “Pensei: será que vou voltar no tempo? Foi sensacional”.
A bela morena, que aparenta ser bem mais nova do que a idade revela, diz que o segredo de sua ótima forma está nos acordes da melodia contagiante. “A black music é meu remedinho para pressão, meu antídoto contra o estresse. As primeiras batidas começam, e os problemas desaparecem, as preocupações terminam e nada mais importa.”
A definição de Mônica parece ser consenso entre os dançarinos do movimento. Há pouco mais de um ano frequentando o Quarteirão do Soul, o atendente de telemarketing Cláudio Machado, 42 anos, não se imaginava arriscando os passos que fazem parte de sua coreografia atualmente. “Sempre gostei muito da música soul e acompanhava o Quarteirão pela internet. Ficava encantado com o jeito de dançar dos frequentadores e cheguei a ir a um encontro, mas me senti intimidado porque achava que nunca conseguiria fazer aqueles passos. Até que percebi que quem ama a batida black e se entrega entende que não existe passo certo ou errado. Andar pode ser soul, correr pode ser soul, até cambalear pode ser soul. Ser soul é expressar a alma. E foi num evento temático que resolvi me soltar de verdade, e, por coincidência, alguns dançarinos do movimento estavam lá e me falaram: seu lugar é no palco. Dali em diante, não parei mais”.
O fiscal de loja Dorvalino Roberto, o Dorvalino Black, de 55 anos, porta um visual de fazer inveja a Tony Tornado nos tempos áureos e dança com a elegância de James Brown. Muita gente não sabe, mas ele é conhecido em todo o país e quiçá fora daqui. Isso porque estrelou a campanha “A melhor fase da vida”, de um banco brasileiro. Gravado em São Paulo, em dezembro de 2014, o vídeo possui mais de 5,3 milhões de visualizações no Youtube. A vitrine? Quarteirão do Soul. “Participei de uma seletiva com excelentes dançarinos e tive a sorte de ser escolhido. Foi uma das melhores experiências de minha vida. Até encarei o medo de avião! Hoje, muita gente ainda me liga para contar que me viu na internet. Devo isso ao movimento, que resgatou uma fase inesquecível de minha história”.
Com sua inseparável bengala – atração à parte de sua charmosa coreografia –, Dorvalino Black não titubeia quando questionado sobre o que o soul é em sua vida. “É parar de pensar e deixar o corpo mostrar o que a alma sente. É experimentar a felicidade, é estar de bem com a vida. Aqui não tem briga, desentendimento, mau humor. Quem ouve a música black quer dividir o amor pelo som com quem está perto”.
PARA TODOS OS GOSTOS
Seja para conhecer, para visitar ou para reencontrar amigos, quem se aproxima da música traz, de fato, um sorriso no rosto. Anderson Matos, de 27 anos, tem na estampa da camiseta a capa de um álbum do Metallica, famosa banda de heavy metal. A calça preta e uma bota coturno completam o visual headbanger. Na companhia de alguns amigos, ele para sob o viaduto Santa Tereza, passa um tempo observando e resolve cair na dança. “Tenho minhas preferências, mas não sou extremista. Todo ritmo genuíno, que surge com um propósito nobre e tem qualidade musical, merece muito respeito. E, nesse caso, não dá para não interagir”, rende-se o roqueiro.
Eduardo Souza, 24 anos, passava pelo local de ônibus, ouviu o som, viu a movimentação e resolveu descer três pontos antes de seu destino para conferir aquela aglomeração. Ao chegar, ficou vidrado pelos movimentos de Dorvalino Black. “Já tinha ouvido falar do Quarteirão do Soul, mas não conhecia pessoalmente”. Souza, que, até então, não tinha planos para a noite de sábado, resolveu ficar. “Não tem por que ir embora com esta festa acontecendo aqui”.
AMOR QUE NASCEU DO SOUL
Muito mais do que mudar a vida das pessoas, o discotecário Geraldinho não imaginava que iria encontrar, por meio de sua paixão pela música, outra grande paixão. A chefe de cozinha Goretti de Oliveira, 55 anos, namorada dele, também não. Eles se conheceram há dois anos, quando o Quarteirão era promovido na rua Santa Catarina, mas a união só veio depois de muito bate-papo – e muita dança. “Ficamos amigos, fomos nos conhecendo melhor e aí começamos a namorar. Temos muita coisa em comum, principalmente a identificação com o soul, que marcou minha juventude. Hoje, posso dizer, com muita honra, que ajudo o Geraldinho na seleção das músicas que ele vai tocar, nos vídeos que ele vai exibir e em tudo o que ele precisar para o evento. Não somos casados, mas foi um encontro perfeito de afinidades. Um cuida do outro”. Goretti não poderia ter surgido em um momento mais propício. Pouco depois do
início do namoro, Geraldinho perdeu o grande amigo e principal parceiro de condução do Quarteirão, Zezinho. “Sentimos muita falta dele, que era uma figura que interagia tanto com todos. Felizmente, eu estava ao lado do Geraldo e pude ajudá-lo não só a atravessar essa fase, como a permanecer firme com o projeto”. De lá para cá, ela assumiu todas as funções que Zezinho fazia e, hoje, é uma espécie de “primeira-dama” do Quarteirão.
FINA ESTAMPA
A elegância típica dos bailes black tem suas raízes na cultura norte-americana, que começou a propagar o soul para o mundo no fim da década de 1950. Terno, gravata borboleta, suspensórios, sapatos em estilo oxford, óculos grandes, chapéu e o tradicional cabelo black power constituem o estilo característico que foi incorporado por diversos artistas, como James Brown, Solomon Burke, Aretha Franklin e Wilson Pickett, - que influenciaram diretamente talentos como Michael Jackson e Prince.
A noite está só começando quando Geraldo Pereira de Souza, o Geraldão, de 52 anos, chega a Santa Tereza. Exemplo da velha guarda do soul, ele atrai todos os olhares de quem se diverte sob o viaduto. Na fina estampa – literalmente black, da grafia gravada sobre os sapatos à cabeça –, o funileiro industrial “entrega o ouro” de onde vem a inspiração para desenhar seus trajes – sim, ele mesmo desenha as roupas que manda confeccionar. “Hollywood, com suas superproduções musicais e dramáticas, é minha grande influência. Sempre fui fã de arte, e o soul é como se fosse meu time de futebol. Desde os 13 anos, sou adepto da black music, época em que meus amigos e eu andávamos por toda a Belo Horizonte carregando vinis debaixo do braço. As capas dos discos, o cinema e os grandes espetáculos me ajudam a compor esse estilo”.
Apesar dos trajes tradicionais, Geraldão ainda encontra espaço para dar seus toques pessoais às roupas, como, por exemplo, o detalhe em renda na camisa espanhola que veste, com as abotoadeiras douradas, e o sapato todo em onça que ele promete mandar fazer.
Contudo, o tradicionalismo e a criatividade exibidos em grande parte das roupas dos frequentadores do Quarteirão não esbarram em qualquer tipo de resistência a quem não adere às vestimentas. “Com muita riqueza, porém vindo da rua e feito para a rua, o que o caracteriza como movimento cultural, o Quarteirão do Soul não busca uma manifestação artística comercial; ele tem que sobreviver de sua própria essência, com uma formação humanizada e com senso de coletividade, de espontaneidade e de aceitação”, pontua o psicólogo Marcelo Pereira, um dos parceiros do projeto.
O fundador Geraldinho abrange ainda mais esse conceito. “O soul recebe todo mundo de braços abertos, sem se importar com padrões de beleza, com peso, com altura, com opção sexual ou religiosa, com estilo e com qualquer escolha pessoal. Até porque é um tipo de música que nasceu entre negros, em um período em que estes eram, de certa maneira, marginalizados. Então, veio para ajudar a derrubar o racismo, unir e agregar pessoas”.
A esta altura da noite, na pista lotada e sob o embalo do som, ninguém ousa duvidar disso.