Profissionais cuja atividade sofre, cada vez mais, o risco de ser extinta sobrevivem no mercado de trabalho, convivendo bem com as novas tecnologias e a concorrência imposta pelas grandes empresas
Daniele Marzano e Viviane Rocha
NÃO EXISTE UM REGISTRO OFICIAL da quantidade de pessoas no Brasil que ainda atuam em ofícios surgidos em séculos e décadas passadas, em sua maior parte manuais, mas o fato é que Todos nós conhecemos alguém que exerce uma profissão antiga, para não dizer quase em extinção, por conta, sobretudo, das mudanças provocadas pela evolução da tecnologia, praticamente indispensável para a maioria das pessoas nos tempos atuais. Mas não indispensável para todos. Profissionais como o consertador de eletrodomésticos Efigênio Mendes, em Contagem, com persistência e criatividade, mantiveram suas atividades e conseguem conviver em harmonia com a modernidade e suas implicações sem terem deixado para trás seu modo de vida, possivelmente com mais qualidade. Quer saber por quê? Então, conheça a história dos personagens que encontramos.
RESTAURA-SE ATÉ GRAMOFONE
Em Contagem, no bairro Ressaca, o senhor Efigênio Mendes, 75 anos, aposentado como servidor público do Estado e consertador de aparelhos eletrônicos, sobretudo os antigos, como radiolas, vitrolas de corda e até gramofones – segundo o site Wikipédia, o gramofone foi inventado pelo alemão Emil Berliner, em 1888, e reproduz som gravado utilizando um disco plano, em contraste com o cilindro do fonógrafo, criado por Thomas Edison, o famoso idealizador da lâmpada incandescente e de vários outros equipamentos.
Efigênio nasceu com uma catarata congênita no olho esquerdo e perdeu a visão do direito depois de ter sofrido um golpe de faca numa brincadeira com os amigos, durante a infância, período em que também perdeu seus pais. Mesmo tendo enfrentado tantas adversidades, senhor Efigênio segue com um sorriso no rosto e uma alegria contida, provavelmente porque realizou seu grande sonho: o de trabalhar consertando rádios.
Vindo da cidade de Três Rios (RJ), ele conta que uma amiga cega o orientou a estudar no Instituto São Rafael, uma das escolas de educação especial mais importantes do país e que está instalada num prédio mais antigo que a própria Belo Horizonte, na esquina das avenidas do Contorno e Augusto de Lima. “Lá, um professor me encaminhou a um médico, Ênio Coscarelli, que, felizmente, curou minha catarata. Estava com 10 anos e, finalmente, podia enxergar melhor”, relembra o aposentado, que, tempos depois, formou-se como radiotécnico.
A formação lhe possibilitou produzir alguns objetos, como aviõezinhos e ventiladores de lata, os quais vendia na rua, além de criar uma rádio não oficial dentro do colégio, que funcionou por muitos anos, de acordo com ele, tendo sido encerrada na ditadura pela Polícia Federal (PF). “Tinha um espírito aventureiro”, brinca, referindo-se à rádio clandestina.
Para se sustentar, o aposentado também dava aulas de inglês. “Fiz ainda um curso rápido de enfermagem para ajudar a cuidar de um padre bastante idoso, na Casa dos Padres, onde fui morar depois que saí do São Rafael, e acabei prestando concurso para o hospital do Ipsemg. Fui aprovado como operador de câmera escura, uma espécie de revelador de chapa de raio X”, explica. Efigênio prestou serviços ao Estado até 2009, mas, fora do horário de trabalho, sempre se dedicou ao conserto dos eletrodomésticos.
O amante do rádio diz nunca ter feito propaganda de seu ofício. “A maior parte de meu público é formada por colecionadores, que acabam me indicando para outros”. Por isso, Efigênio afirma não ter detectado um aumento na demanda por consertos após o início do período de economia instável. “Hoje, as pessoas têm o hábito de ouvir rádio pelo celular. Só mesmo quem coleciona ou aprecia objetos antigos me demanda serviços”, reforça ele, que também, vez ou outra, adquire uma antiguidade e a recupera, mantendo, assim, sua paixão viva.
RELOJOEIRO E AMOLADOR
Ainda em Contagem, no bairro Eldorado, a reportagem conversou com o relojoeiro, gravador de alianças e amolador de facas e alicates Hebert Martins, de 46 anos. Ele começou a trabalhar na década de 1980 e diz que, com a ajuda de amigos e muita prática, foi aprendendo a exercer, uma a uma, as três atividades. “Comecei como relojoeiro, consertando despertadores e, depois, relógios de pulso; um tempo depois, aprendi a fazer gravação em alianças e, por último, fui amolar facas e alicates”, este último o mais difícil dos três ofícios, segundo Hebert, mas, hoje, seu carro-chefe. “Era preciso agregar valor ao meu trabalho, pois as mudanças nessa época, em termos de tecnologia, aconteceram de forma muito rápida, afetando negativamente alguns negócios”, lembra. Um exemplo disso citado por Hebert está na invasão do mercado chinês de relógios no Brasil. As pessoas passaram a preferir comprar um relógio mais barato, mesmo cientes de que não se tratava de um produto original, a mandar consertar o velho”.
Apesar das dificuldades impostas às atividades – como o teto salarial, segundo ele –, Hebert não se vê fazendo outra coisa. Ele conta que já tentou trabalhar em escritório, mas não conseguiu ficar por muito tempo. “Adoro meu trabalho. Preciso de dinheiro, claro, mas não sou ambicioso. Entregar um serviço e ver a satisfação do cliente é algo muito mais gratificante para mim”. Hebert assume que o preço que cobra, por exemplo, para amolar uma faca, R$ 7, não é dos mais baratos na região, contudo, ele garante um bom trabalho e ainda dá garantia. Embora atue nos três ofícios, conforme ele disse, o forte são os alicates, geralmente usados por manicures, que formam grande parte de seu público-alvo.
LEITE FRESQUINHO
Em Betim, na região de Vianópolis, o senhor Geraldo da Silva, de 88 anos, entrega leite em sua charrete, guiada pelo cavalo Boneco, há mais de três décadas. Separado e pai de três filhos, ele conta com a produção diária das vacas Crioula, Cabana, Espadilha e Priscila para vender aproximadamente 30 litros de leite por dia, saindo cada um deles por R$ 2. Em vez das garrafas de vidro, material utilizado antigamente para comercializar o produto, senhor Geraldo usa as PET.
Vindo de Esmeraldas, na década de 1960, ele já trabalhou em quase todas as fazendas da região de Vianópolis, nos tempos em que se tocavam bois e vacas até a capital mineira. Depois, começou a criar seus animais e a atuar por conta própria – ele, com a venda de leite, e a ex-esposa, com a produção e a comercialização de doces caseiros. Ao todo, são mais de 70 anos lidando com gado, em meio à natureza.
Exemplo de vivacidade, senhor Geraldo, o nosso “garoto do leite”, como era conhecida a profissão, faz planos para melhorar o negócio: “Estou criando mais duas vaquinhas. Portanto, em breve, devo aumentar as vendas”, diz, confiante, o leiteiro, que sai cedo de casa, por volta das 7h, e retorna após duas horas mais ou menos, felizmente com a charrete vazia. Prova de que muitos, mesmo podendo usufruir da modernidade, que trouxe os processos de pasteurização e refrigeração do leite, preferem consumidor o leite fresco. “O sabor do leite fresco é muito melhor. Além disso, o ato de comprar diretamente do leiteiro nos remete aos tempos antigos, dos quais temos muita saudade”, diz Miguel Arcanjo dos Reis, 75, amante de produtos da roça.
CONSERTOU, ESTÁ NOVA
Também em Betim, no bairro Brasileia, o casal de costureiros Eunice e Francisco da Cruz, de 50 e 58 anos, respectivamente, não só manteve o ofício diante do surgimento de grandes lojas de roupas, como constatou, no último semestre, um aumento nos pedidos de consertos de roupas. “Há seis meses, a procura dobrou, e, muitas vezes, meu marido precisa trabalhar durante a noite para dar conta da demanda”, conta Eunice, costureira há 25 anos. Ela aprendeu o ofício com o marido, conhecido em Betim como Tico. O casal possui o ateliê West Confecções, em atividade há 17 anos e um dos mais procurados no município. Para a costureira, a busca por reformas de roupas tem sido a melhor alternativa para quem não quer gastar dinheiro com peças novas. “Sem dúvida, fica muito mais barato para o cliente”, destaca.
Para se ter uma noção do aumento de trabalho no ateliê, Eunice revela que, no início de 2015, procurava o estabelecimento uma média de cinco clientes por dia. Atualmente, esse número está em torno de 15. Mais duas costureiras ajudam o casal a cumprir a agenda. A equipe trabalha de segunda a sábado, com uma tabela de preços padronizada, cujo objetivo é atender a todos os bolsos. O conserto de uma calça jeans, por exemplo, custa R$ 15. Quando é necessário reparar apenas algum detalhe, como a barra ou a cintura, o valor é menor, R$ 10.
E NADA DE PEDRAS NO SAPATO
Na capital mineira, no bairro São Marcos, Hélio Simeão Ferreira, sapateiro há mais de 30 anos, luta para sobreviver e preservar a tradição de seu ofício. Aos 53 anos, Helinho, como é chamado, não percebeu um aumento significativo na procura por consertos, mas diz que os clientes fiéis não deixam de procurá-lo. De acordo com ele, apesar de todo o seu esforço para manter uma boa qualidade no trabalho que desenvolve, não obtém muito lucro, sobretudo neste período de economia estagnada, mas, por outro lado, Helinho ainda não registrou prejuízos. “Trabalho por conta própria e, às vezes, terceirizo minha mão de obra. Sem trabalho, a gente não fica”, garante. Não fica mesmo. Isso porque ele é conhecido na região por ser um profissional multifacetado – Helinho também atua como porteiro freelancer e músico. “Quando uma área está um pouco fraca, sigo para outra, mas minha prioridade é o conserto de calçados”, afirma.
A profissão de sapateiro tem um valor sentimental para Helinho. “Com tristeza, percebo que minha profissão está desaparecendo do mercado, mas tenho uma missão, que é ajudar a preservá-la”, explica. Helinho atende em sua própria casa e depende da velha propaganda boca a boca para atrair novos clientes. Além disso, ele adota uma política de preços justos para o consumidor que dá preferência à sua mão de obra. “O material que uso é bastante caro, mas não posso repassar o preço real para os clientes, senão os perco”, confessa. “Se estou há tanto tempo em atividade e, mesmo com todas as dificuldades, sigo com meu ofício, creio que é porque não exploro meus clientes, e, com sorte, eles continuam confiando em mim”, declara.
Uma cliente de Helinho e divulgadora de seu trabalho é a professora e jornalista Danúbia Lage, de 33 anos. “Não sou uma pessoa consumista, e, em época de recessão econômica, quanto mais se economizar, melhor para o bolso”, pontua. Há três anos, ela recorre às técnicas do sapateiro para restaurar seus calçados. “Neste ano, por exemplo, pedi para que ele consertasse uma bota, serviço que me custou R$ 25. Se eu fosse comprar um par novo, não gastaria menos de R$ 200”, compara.
Ela recomenda o trabalho de Helinho para familiares e conhecidos. “Falei para minha cunhada e já estou com alguns calçados dela para levar até ele”, conta. A busca pelos serviços dele por Danúbia é um dos contornos dos efeitos negativos que a crise trouxe para a jornalista, que ficou desempregada em dezembro de 2014.
LAMBE-LAMBE MODERNO
Ainda na capital mineira, outro amante de seu ofíciomostra como se manteve na atividade e como se adaptou à modernização sofrida especialmente por sua profissão. O fotógrafo lambe-lambe Altino Thomaz Neto, de 69 anos, morador do bairro Saudade, tem tanto fascínio pela profissão que, mesmo tendo se aposentado, ainda trabalha, e nos fins de semana. Assim como seus colegas de reportagem, o fotógrafo acompanhou a evolução de seu ofício, afinal, começou com o pai, aos 12 anos, e não parou mais.
Em seu posto de trabalho desde o início da carreira, o Parque Municipal Américo Renné Gianetti, ele faz questão de ainda exibir a primeira máquina que utilizou para registrar imagens, a conhecida popularmente como lambe-lambe – o nome, segundo ele, deve-se ao fato de que, antigamente, o profissional, para certificar-se do lado certo de revelação da fotografia, precisava passar a língua no vidro sobre o qual estava a imagem e onde língua para ter certeza do lado em que havia a emulsão”, conta.
Infelizmente, a lambe-lambe não funciona mais, servindo apenas como peça de exposição. Hoje, Altino dispõe de uma câmera semiprofissional, um computador e uma impressora a laser, o que o permite entregar o resultado, nos tamanhos 10 x 15 ou 15 x 21, na hora. “Fico lembrando que já precisei esperar 15 dias para ver uma foto pronta. O processo de revelação era feito em Manaus, único local do país em que era possível realizar esse trabalho, na década de 1970. Agora, em 15 segundos, entrego a foto para o cliente”, compara.
Todos os equipamentos do senhor Altino ficam sobre um carrinho que ele e seu pai desenvolveram e que já funcionou como um minilaboratório. Presidente, há 15 anos, da Associação dos Comerciantes e Concessionários do Parque Municipal (Ascopam), fundada em 1987, senhor Altino diz que a fotografia foi a primeira atividade remunerada no parque, onde hoje se podem encontrar outros nove fotógrafos, todos licenciados
A fim de atrair a clientela, além da lambe-lambe, o fotógrafo possui dois brinquedos, nos quais as crianças gostam de montar para serem registradas. De acordo com o aposentado, o público o aciona mais no início do mês, época em que geralmente as pessoas recebem seus salários. “O local em que ficamos – os fotógrafos têm de revezar os pontos a cada fim de semana – também influencia as vendas”, revela sem informar o quanto fatura por fim de semana. Ele apenas brinca dizendo que “dá comprar o leite e o pão de todo dia”. Satisfeito, senhor Altino recorda-se de que pagou a licença para trabalhar no parque com um táxi. “Nunca me arrependi disso. Valeu a pena”, comemora.
SERVIÇO
GERALDO DA SILVA (ENTREGADOR DE LEITE)
Rodovia 060 (Frei Orlando), Vianópolis – Betim
WEST CONFECÇÕES (COSTUREIROS EUNICE E TICO)
Rua Marechal Rondon, 108, bairro Brasileia – Betim
(31) 2571-5192
EFIGÊNIO MENDES (CONSERTADOR DE ELETRODOMÉSTICOS)
Rua Cruzeiro do Sul, 61, Ressaca – Contagem
3357-5696
HEBERT MARTINS (RELOJOEIRO, GRAVADOR DE ALIANÇAS E AMOLADOR)
Avenida João César de Oliveira, 2.307, Eldorado – Contagem
3391-1661
HELINHO (SAPATEIRO)
9930-3066
ALTINO THOMAZ (LAMBE-LAMBE)
Parque Municipal Américo Renné Gianetti