Rumo a Tóquio
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Criado em 16 de Dezembro de 2015
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Fotos: Samuel Gê | Augusto Martins
Artur, Lidiane e Rafaela, três jovens de Betim, foram ‘garimpados’ por projeto de formação de atletas da UFMG e podem ter um futuro literalmente de ouro
Daniele Marzano
A PAIXÃO PELO ATLETISMO fez os caminhos percorridos pelos betinenses Rafaela, de 13 anos, Artur, de 15, e Lidiane, de 17, se cruzarem. Mesmo morando na mesma cidade, em Betim, os três, até há pouco tempo, não se conheciam, embora já possuíssem uma característica em comum – a agilidade nas pernas. E como se deu o encontro desses jovens? O treinador Roberto De Santis, 26 anos, um descobridor de talentos de atletismo do Centro de Treinamento Esportivo (CTE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), numa visita a escolas da região metropolitana de Belo Horizonte, em busca de jovens com potencial para o atletismo, reconheceu a capacidade técnica deles e os convidou para participarem de uma “peneirada”, uma seleção dos melhores.
Roberto foi atleta velocista na Itália e está no Brasil há quase quatro anos – veio fazer mestrado em Ciências do Esporte pela UFMG. Como treinador do projeto Desenvolvimento do Esporte, uma parceria da Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal (APCEF) com o CTE, percorre escolas de Belo Horizonte e da região metropolitana atrás de jovens com habilidades esportivas, oferecendo-lhes a oportunidade de um futuro promissor. Foi numa visita a Betim que o professor de educação física encontrou, primeiramente, Lidiane, e, depois, Artur e Rafaela. Entusiasmados, os adolescentes participaram do processo seletivo e foram selecionados. Hoje, fazem parte do projeto Desenvolvimento do Esporte, que conta com outros quatro treinadores e uma estagiária de educação física.
E o responsável por esses profissionais e por idealizar o CTE é ninguém menos do que o polonês Leszek Antoni Szmuchrowski, 65, ex-atleta no salto em altura, treinador e professor titular de educação física na UFMG há 30 anos. Há 33 no Brasil, Leszek é uma figura importante na história de formação de atletas. Para ser ter uma ideia, incentivado pelo amigo Pedro Toledo, que treinou o recordista mundial em salto triplo, João Carlos de Oliveira, o João do Pulo, e também a bicampeã sul-americana e vice-campeã íbero-americana Elizete Marques, Leszek veio para cá capacitar uma das maiores velocistas e saltadoras de todos os tempos, a mineira Esmeralda de Jesus, para as Olimpíadas de Los Angeles, em 1984. O polonês chegou a treinar também Elson Miranda, atual técnico da atleta Fabiana Murer, campeã mundial no salto com vara. “Fui um atleta malsucedido e quis compensar isso tentando ser um bom treinador”, brinca Leszek, que lamenta o fato de nosso país ainda ser muito carente de estrutura para “alimentar” e formar bons esportistas. “Quando vim para o Brasil, tinha vários planos, mas, infelizmente, precisei esperar 30 anos para ver o CTE como está hoje. Agora, temos a melhor pista de atletismo do Brasil e uma das melhores do mundo e, infelizmente, essa prática quase não existe em Minas Gerais”, pontua o professor. Mas, apesar disso, ele se sente orgulhoso com os resultados já alcançados em dois anos e meio de funcionamento do projeto. “Nesse tempo, em torno de 8.000 jovens já passaram por aqui. Já nos destacamos em nível nacional, trazendo para Minas quatro medalhas, sendo uma de ouro e três de prata. O mais importante é que estamos levando o atletismo, que, para mim, é uma das modalidades esportivas mais importantes, para dentro das escolas”, comemora.
O educador físico Roberto De Santis é um dos técnicos e preparadores dos atletas pelo projeto
da UFMG; ele sempre vista escolas de BH e região em busca de talentos esportivos
FUTUROS CAMPEÕES
Artur Andrade Mariano, de 15 anos, mora no bairro Universal, na região do Imbiruçu. Ele cursa o oitavo ano e foi indicado para participar da “peneirada” pela própria escola onde estuda, a Osório Aleixo da Silva, depois de ter se destacado em um campeonato de atletismo promovido entre os estudantes. Em seu primeiro de dia de treinamento no CTE, no fim de outubro, quando a equipe de reportagem visitou o centro para conversar com os futuros atletas, ele disse. “É o meu primeiro dia de treinamento, mas já deu para perceber que é um projeto muito bacana, que nos ensina vários tipos de exercícios. Estou gostando muito”. Infelizmente, dias depois de nosso encontro, o garoto teve de desistir de seu sonho porque a família não conseguiria manter o transporte dele até o CTE – ele utiliza quatro ônibus por dia e deve treinar, no mínimo, três vezes por semana. No entanto, para a alegria do garoto, de seus familiares e de nós, brasileiros, que torcemos muito para que o país se desenvolva em outras modalidades esportivas e revele, cada vez mais, esportistas promissores, a revista Mais, que já patrocina uma equipe mineira de mountain bike, a Mais Aventuras, irá pagar as passagens de Artur durante o ano de 2016. “O incentivo a outras modalidades de esportes no ‘país do futebol’ é muito importante. Afinal, as demais práticas desportivas são tão especiais quanto a que movimenta milhões e tem sido tratada de maneira especial há décadas. Todos ganham com a formação de novos talentos e a vinda de medalhas e troféus para o Brasil. Trata-se, sobretudo, de um incentivo que pode definir o futuro de muitas pessoas na maioria das vezes, colocadas à margem pela sociedade e pelo próprio poder público”, afirma o diretor-geral da revista, Geraldo Eugênio de Assis. Em conversa com a mãe de Artur, Daniele Silva Mariano, ficou acertado que, ainda em dezembro, o filho voltaria aos treinos. “Que Deus o abençoe nessa trajetória”, disse Daniele, agradecendo o patrocínio.
Outro “tesouro” encontrado pelo treinador Roberto De Santis em Betim é Rafaela Rocha Moura, de apenas 13 anos. Moradora do Capelinha, bairro situado também na região do Imbiruçu, ela é uma esportista nata. Afinal, segundo conta, já praticou diversas modalidades tanto na escola em que estuda, a Osório Aleixo da Silva, a mesma de Artur, quanto em um projeto social que, até há pouco tempo, era ofertado no Teresópolis, bairro vizinho ao dela. “Já fiz natação, futebol, capoeira e, agora, pratico o atletismo”, diz Rafaela, que revela ter uma paixão especial pela corrida. “Depois que comecei a praticar, não quis parar mais”, afirma a garota. A família da jovem foi acompanhá-la em seu primeiro dia de treino no CTE. Toda orgulhosa de Rafaela, a mãe disse à reportagem que acreditava muito no potencial da filha. “Ela nunca ficou parada. Rafaela realmente gosta de esporte e, agora, se encantou pelo atletismo”, declarou Sílvia Rocha.
TALENTO REVELADO
Já a história de Lidiane Francielle Fernandes Barboza, de 17 anos, é um pouco diferente das de Artur e Rafaela. É que Lidiane faz parte do projeto do CTE há mais tempo, dois anos. Ela, que vive com a família no bairro São Caetano, também no Imbiruçu, já é campeã mineira nos 100 e nos 200 m rasos, com a marca de 12,48 s, além ter colecionado 25 medalhas nesse tempo de atuação.
E o talento de Lidiane se estende a outras áreas – ela se destaca no salto a distância e, por muitos anos, dançou balé. “Durante quase dez anos, pratiquei balé. Eu gostava muito e até sonhava me tornar uma bailarina famosa, mas quis o destino que eu fosse para o atletismo”, diz Lidiane, que sempre teve o apoio incondicional da mãe tanto na dança, quanto no esporte. “Minha mãe é minha maior
incentivadora. Logo no início do projeto, percebi que estava muito difícil para minha família pagar minhas idas quase que diárias ao CTE. Eu gastava cerca de R$ 50 por semana. No fim do mês, isso pesava muito para meus pais, que, na época, estavam desempregados. Então, apesar de gostar muito, decidi abandonar os treinos e disse para minha mãe: “Eu só volto se o Roberto me ligar me chamando
de volta”. A mãe, Heloísa, enxergando na filha um enorme potencial, resolveu ligar para o treinador e pedir a ele que telefonasse para sua casa, mas sem revelar que se tratava de um pedido da filha. Roberto atendeu ao desejo da “mãe coruja” e ligou para Lidiane convidando-a a voltar e lhe prometendo uma ajuda no transporte. “Eu acabei conseguindo uma Bolsa-Atleta e me animei novamente. Só depois de um tempo, minha mãe me contou a verdade. Mas não fiquei chateada. Sabia que ela torcia muito por mim e que queria
meu bem”, relata Lidiane, que tem dois sonhos: ser campeã sul-americana e disputar o mundial. “Sei que é muito difícil porque, infelizmente, só nosso esforço não é suficiente, mas vou batalhar muito para conseguir”.
E a jovem já está cumprindo sua promessa. Depois de conceder entrevista a esta reportagem, Lidiane participou da etapa nacional dos jogos escolares, realizada em Londrina (PR), em novembro. Ela não venceu, mas ficou em primeiro lugar na bateria, melhorando seu tempo em 1 segundo. Se, em Londrina, o título passou perto da velocista, em Uberaba (MG), dois meses antes, ele chegou às mãos dela. Na competição estadual dos Jogos Escolares da Juventude ( Jemg), ela foi considerada a melhor atleta de Minas Gerais entre 15 e 17 anos. A premiação, que ocorreu em dezembro, aumentou para 25 o número de medalhas colecionadas em casa.
PERCALÇOS
O treinador Roberto De Santis conta que uma das principais dificuldades enfrentadas pelos jovens que participam do projeto é a falta de transporte e de alojamento para eles. “A maioria mora distante e, infelizmente, não possui boas condições financeiras. Então, muitos pais cobram ajuda deles no sustento da família”, lamenta De Santis. Segundo ele, o projeto financia, para todos os participantes, material
esportivo, que inclui tênis, uniforme e sapatilhas, e atendimento médico. Mas apenas os atletas com melhor desempenho são beneficiados com o transporte.
Atualmente, o projeto mantém 80 jovens, com idades que vão dos 11 aos 23 anos. E, felizmente, conforme informa o treinador, o Desenvolvimento do Esporte pode abarcar até o dobro dessa quantidade. Por isso, as “peneiradas” são tão importantes. Elas ocorrem uma vez por semestre, e os dirigentes do projeto contam com o apoio da imprensa para sua divulgação, a fim de que muitos e novos talentos sejam sempre descobertos.
Perguntado como detecta garotos e garotos com potencial, o treinador responde que analisa o biotipo da pessoa, sua capacidade física e aspectos psicológicos, como motivação, comprometimento e força de vontade. “No início, os jovens selecionados treinam três vezes por semana, sendo que os treinos duram em torno de duas horas. A partir dos 14 anos, eles passam a treinar cinco dias, participando tanto de sessões técnicas, que fazem parte da maioria das provas do atletismo, quanto de sessões de treinamento de força. Tudo é preparação pra que eles tenham condições de competir campeonatos estaduais e brasileiros da categoria”, explica De Santis. Segundo ele, dos 80 existentes atualmente, cerca de 20 já se destacaram em competições desses níveis, como é o caso da betinense Lidiane.
BEM PARA CORPO E ALMA
Além das corridas de velocidade - de 100 m, 200 m e 400 m -, as provas de atletismo englobam os saltos horizontais e verticais, os arremessos e os lançamentos. Os benefícios propiciados por essa prática versátil contemplam corpo e mente. De acordo com o nutrólogo e médico esportivo Lucas Penchel, são inúmeras as melhorias que essa modalidade pode proporcionar ao organismo. “O atletismo provoca gatilhos hormonais durante toda a sua execução, o que nos leva a sensações de prazer, bem-estar e satisfação. Ocorre a liberação de neurotransmissores e catecolaminas, responsáveis pelo controle da depressão, da ansiedade e do estresse”, explica Penchel. Como atesta o treinador italiano, a maioria dos participantes do projeto teve melhora no rendimento escolar e no comportamento dentro de casa, segundo relatos dos pais. E não só os garotos ganharam com o projeto. “Com certeza, cresci muito profissionalmente. E a convivência diária com a equipe do CTE ainda me ajudou a aprimorar meu português”, orgulha-se De Santis, que se sente em casa no centro de treinamento mineiro.
ESTRUTURA DE PONTA
O Centro de Treinamento Esportivo (CTE) é uma parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o governo do Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Esporte e da Juventude (SEEJ). O local é um celeiro técnico-científico de desenvolvimento de atletas, treinadores e graduandos dos diversos cursos integrantes da equipe multidisciplinar. Ainda em reformas, o CTE ficará pronto para os Jogos Olímpicos de 2016, pois, a partir de janeiro próximo, já receberá a equipe da Grã-Bretanha, que alugou o espaço para fazer seus treinos.
Paralelamente aos treinos da equipe inglesa, continuará sendo ofertado no centro o projeto de formação de atletas, que recebem no espaço treinamentos técnico, físico e tático, além de acompanhamento multidisciplinar por meio de equipes médica, fisioterápica, fisiológica, nutricional, odontológica e psicológica. O CTE ainda poderá ser utilizado por outras equipes e atletas antes e durante os Jogos Olímpicos. O objetivo, de acordo com Leszek, é buscar a excelência na formação, desde a base até o alto rendimento, no desenvolvimento e na preparação de atletas mineiros.
POLO ESPORTIVO
O CTE faz parte do complexo de esportes, recreação e lazer da Pampulha, reunindo condições técnicas e físicas para transformar o Estado de Minas Gerais em um importante polo esportivo. O centro se situa num terreno de 94 mil metros quadrados da UFMG próximo ao Mineirão e ao Mineirinho. Seu projeto foi criado pela Escola de Arquitetura da universidade, a partir de requisitos técnicos das escolas de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional.
O espaço conta um parque aquático – a piscina é a única do país a possuir bordas móveis, que permitem sua utilização por diferentes modalidades –; uma pista de atletismo – revestida com material sintético e equipada para provas olímpicas e paralímpicas, de campo e de pista, sendo uma das poucas no Brasil com certificação máxima da IAAF, entidade internacional de atletismo –; e um pavilhão esportivo, com duas quadras poliesportivas para a prática de distintas modalidades, em finalização.
Márcio Prudêncio treina Vitória Ferreira, de 15 anos, que, em outubro, ganhou medalha
de prata no campeonato brasileiro, no salto em altura, com a marca de 1,63 m
NOME DE PESO
Outro técnico do CTE responsável por formar essa turminha que pode fazer bonito nos Jogos Olímpicos de 2020 é ninguém menos do que Márcio Vianna Prudêncio, filho de Nelson Prudêncio, um dos maiores atletas brasileiros ao lado de Adhemar Ferreira da Silva e João Carlos de Oliveira, o João do Pulo. Para quem não se lembra, Nelson protagonizou uma disputa fantástica pelo ouro olímpico no México, em 1968. Ele acabou levando a medalha de prata (com 17,27 m) em uma prova cujo recorde mundial e olímpico foi quebrado por nove vezes no mesmo dia. E, quatro anos depois, em Munique, ele ficou com o bronze (com 16,22 m).
Márcio, 40 anos, é natural de São Carlos (SP), mas está morando em Belo Horizonte desde que aceitou o convite do professor Leszek Szmuchrowski, por intermédio de Nelson e de Pedro Toledo, o ex-treinador de João do Pulo e de Elizete Marques, para atuar no projeto de atletismo da UFMG – nas provas de salto, no heptatlo, competição olímpica feminina de sete provas, realizada em dois dias (sendo no primeiro os 100 m rasos com barreiras, o salto em altura, o arremesso de peso e os 200 m rasos, e, no segundo, o salto em distância, o lançamento de dardo e os 800 m) e no decatlo, a versão masculina da prova (100 m, salto em distância, arremesso de peso, salto em altura, 400 m no primeiro dia e 110 m com barreiras, lançamento de disco, salto com vara, lançamento de dardo e 1.500 m no segundo dia).
O técnico paulista, que praticou atletismo até o ano de 2005, tendo iniciado aos 12, também se enveredou para a área acadêmica – finalizou seu mestrado, no início de dezembro, em biomecânica, pela Unicamp, e pretende pleitear uma vaga de professor na Universidade Federal de Minas. “Eu me envolvi e me encantei com o trabalho executado pelo Pedrão (Pedro Toledo). Por isso, decidi contribuir para a formação de atletas mineiros e também aprender muito, aceitando o desafio proposto por Leszek”, declara.