Trem das 7 carrega o bem
Projeto beneficente da capital incentiva moradores de rua a praticarem corrida, e participantes afirmam que esporte trouxe nova perspectiva de vida para eles
No centro da foto, a psicóloga Érica Machado, idealizadora do Trem das 7, com voluntários do projeto e alguns dos participantes reunidos em um dos encontros realizados
Sara Lira
Estabelecer uma meta de distância e conseguir alcançá-la em uma prova de corrida ou durante um treino é uma superação para a maioria dos corredores. Mas, para participantes de um projeto em Belo Horizonte, os efeitos da atividade física ultrapassam os de melhoria da saúde e conquista de objetivos, representa uma ressignificação de vida.
O Trem das 7 reúne moradores em situação de rua na capital mineira que, auxiliados por voluntários, treinam três vezes por semana. Um deles é João Souza Araújo, de 50 anos. Em 2018, no primeiro ano de treinos, ele conseguiu correr 10 km na Volta Internacional da Pampulha, uma das maiores competições do país.
Souza conta que o esporte foi um divisor de águas na vida dele. Antes, era dependente do álcool; agora, além de mais saudável, é mais calmo e tem sonhos e metas para o futuro. “A corrida me motiva a treinar mais e também foi um alívio em várias áreas de minha vida. Melhorou meu modo de me comportar, de falar. Não tenho mais a ansiedade que eu tinha”, resume.
A idealizadora do Trem das 7 é a psicóloga e coach Érica Machado. Em 2017, ela foi ao albergue Tia Branca, no bairro Floresta, na região Centro-Sul de BH, para auxiliar em outro projeto. “Lá, um dos abrigados me disse que não aguentava mais beber, que bebia para dar conta da dor de ser invisível, da fome, da falta de esperança. Aquilo me deu um mal-estar. Decidi, então, que o ajudaria”, relembra.
Com a proposta de fazer um projeto permanente não apenas para ele, mas para muitos outros, no mesmo ano Érica começou voluntariamente a primeira turma de coaching. O processo, realizado por meio de encontros na unidade de acolhimento Anita Gomes dos Santos, no centro da cidade, dura três meses e visa restabelecer a autoestima das pessoas e auxiliá-las a terem novas perspectivas de vida. Segundo a psicóloga, o primeiro grupo manifestou o desejo de parar de usar drogas e álcool e sugeriu um esporte como meio para isso. Nesse momento, surgiu a corrida, que ela afirma ser uma modalidade esportiva mais democrática e acessível em comparação a outras.
O projeto também conta com um time de profissionais, como preparadores físicos, que montam as planilhas de treinos, e os voluntários Ana Crepaldi (médica), Volnei Prado (preparador físico), Bernardo Santanna, Paulo Henrique Valente e Thaíze Souza (atletas voluntários), que auxiliam os participantes. “Na segunda e na quarta, eles treinam com os voluntários. Na sexta, fazem sozinhos, pois queremos estimular a autonomia deles”, explica Érica.
Em 2017, primeiro ano do Trem das 7, 11 participantes correram a Volta da Pampulha, feito repetido no ano passado.
Nova perspectiva
O projeto surte efeitos positivos na vida dos participantes. De acordo com a assistente social do abrigo Anita dos Santos, Sirlene Afonso das Graças, o trabalho de coach contribui para o desenvolvimento pessoal. “Parece que a vulnerabilidade deles é só financeira, mas também é emocional. E, nesse trabalho, eles se veem uns nos outros. Isso é importante para perceberem que podem superar os obstáculos”, afirma. Além disso, reforça, a ação contribui para a saúde mental e física de todos. “Promove uma sensação de bem-estar que ajuda nesse processo de desenvolvimento”, diz.
Os frutos do Trem das 7 são muitos: abandono de dependências químicas, descoberta de novas atividades profissionais e retomada de antigos talentos são alguns dos exemplos que traduzem como a vida dos “meninos”, forma carinhosa com que são chamados por Érica, é ressignificada. No caso de Mirley Rodrigues Campos, de 51 anos, participar da Volta da Pampulha em 2018 significou uma grande vitória. “Ganhamos até medalha. Eu me senti muito bem. Liguei para minha filha no dia e mandei foto para ela. Ela ficou orgulhosa”, conta.
Além da vitória física, ele resgatou sua dignidade enquanto profissional. Atualmente, Campos atua como carpinteiro em uma marcenaria que funciona no abrigo Anita. O maquinário é operado por ele e por Antônio Rodrigues, que também é atendido pela unidade de acolhimento. Eles fazem peças variadas de madeira e vendem os produtos toda sexta-feira na feira de artesanato da avenida Bernardo Monteiro, no bairro Funcionários, em Belo Horizonte.
“Senti uma mudança muito grande em minha vida, fisicamente e mentalmente. Além disso, aprendi a respeitar as pessoas. Se eu soubesse, teria começado antes”, afirma.
Força de vontade
Já João Araújo, citado no início da matéria, fez um curso de cuidador de idosos, concluído no mês de abril. Ele salienta que passou a ver a vida sob outro ponto de vista após participar dos trabalhos de coach e corrida. A cada semana do processo, conforme Érica explica, metas vão sendo traçadas, o retorno das ações chega, e o vício ou outro problema dão espaço a uma nova perspectiva. “Quando a pessoa consegue recuperar a vida, é um impacto não só para ela, mas para a família também”, pontua.
Para o futuro, ele pretende atuar na profissão que escolheu, conseguir estabilidade financeira e continuar cuidando da saúde com a prática da corrida. “Reaprendi que a primeira palavra para mudar é querer, pois, se a pessoa não quer, nada é concretizado. Hoje sinto vontade de pensar e agir diferente”, finaliza.